Uma história sobre almas
boas
Essa é uma história sobre almas
boas. Ela começa parecida com todas as outras. Era uma vez uma família que
estava de férias e pegou a estrada rumo ao descanso merecido. Eles iam acampar.
Lonjura só de estrada. Pra mais de mil quilômetros de distância. Percorridos em
duas etapas. Dormir no caminho para não cansar as crianças. Quando o pai vê a
quantidade de bagagem já pensa logo: “não vai caber no carro”. Respira fundo e
começa a arrumar a tralha. Vai enfiando tudo nos buracos que vão se acabando.
Parece carro de feirante. Capaz de ter que deixar um dos meninos pra caber.
Depois de um quase milagre todos estão no carro. Meninos, bagagem, travesseiros
e alegria. Inicia a viagem. A primeira etapa é curta. Para em hotel fazenda achado
na internet. Uma formosura. Descanso do corpo cansado para seguir viagem no
outro dia de madrugada. O galo ainda não cantou quando é fé, todos na estrada
de novo. O orvalho frio da manhã embala o carro de feirante. Meninos perdidos
no meio dos travesseiros. Melhor render na estrada antes que alguém jogue pedra
no ninho dos caminhões. Estrada federal. Anos a promessa de duplicação. Nada.
Mas para a família que saia de férias isso era o que menos importava. Seguia
num misto de dorme um pouquinho, ipad um pouquinho, livro um pouquinho, música
um pouquinho. O motorista não. Só na direção. Costurando caminhões como se
fosse um alfaiate. Estrada ruim. Asfalto ruim. Cada caminhão trazia uma carga.
Uma história. Vai o motorista em seu intrépido carro de feirante. Tralha pra
todo lado. Eis que numa subida o ponto do alfaiate desanda. Um minuto de
besteira e o choque inevitável com a traseira de um caminhão. Pesado caminhão. Pra
mais de 20 toneladas. Os segundos pareceram minutos. Entre gritos e choros o
barulho do susto. Os meninos entre os travesseiros. O carro no meio da estrada.
Tenta ligar. Nada. Num reflexo solta o veículo e ele se move lentamente para o
acostamento. Choro incontido dos meninos. Pergunta se tudo está bem. O mais
novo parece machucado. Tira o cinto de segurança e o acomoda no colo da mãe.
Mãe que parece anestesiada. Filho chorando no colo. Pensamentos mil passam na
cabeça. E as férias? O motorista do caminhão que acompanhava tudo desce e
caminha em direção ao carro. Foi ver como estavam todos. Todos parecem
atordoados. O pai sai do carro e se aproxima do local da colisão. Parece
procurar uma explicação. Não tem. Foi o ponto do alfaiate que saiu fora do
lugar. Espetou-lhe o dedo a agulha. Volta em direção ao veículo. Percebe as
labaredas no meio do ferro retorcido. Corre a tirar as crianças de dentro do
carro: “está pegando fogo!”. O choro que havia acalmado volta com toda a
intensidade. Pega um menino joga na mão do caminhoneiro. Pega o outro coloca no
capim a beira do acostamento. Ela está sem sapatos. É mês de seca. O sol está
escaldante. A humidade baixa. Pega o extintor. Descarrega no fogo. Apaga. O
acampamento também começa a se apagar. O telefone começa a pipocar. Família de
longe querendo saber notícia. Começa a via sacra do seguro. Precavido o seguro.
Explicar para alguém que está em outro Estado a localização. Os nomes não são
familiares a quem está a mais de três mil quilômetros de distância. As crianças
ainda choram. O motorista do caminhão olha tudo. Propõe levar todos para a
cidade mais próxima. Coisa de uma centena de quilômetros. Diante do sol,
humidade, choro e decepção se aceita o convite. Todos para a boleia do
caminhão. Os meninos nunca andaram no caminhão. Emoção diferente. Não demora
muito eles adormecem. Parece que dormem o sono dos justos. O sangue esfria. A
mente trabalha. As dores aparecem. As cenas voltam. O caminhão lento. O
motorista parece sensibilizado. Conta que está num percurso de quase quatro mil
quilômetros com uma carga. Conta um pouco da sua história. Parece uma alma boa.
Preocupado com as crianças. Vai no seu caminhão devagar. Tentando chegar. Para
depois voltar. E chegar. E segue a vida. Interminável caminho. Chegam à cidade.
No caminho o celular resolveu o problema. Já havia gente esperando na parada.
As crianças queriam que o caminhoneiro almoçasse com elas. Queriam retribuir de
alguma forma. Ele declinou do convite. Precisava seguir viagem. Seguir por onde
a estrada o levasse. As crianças insistiram, mas ele se foi. Parecia
preocupado. Parecia consternado. As crianças não conseguiram almoçar. Não nesse
dia. Resolvidos os problemas burocráticos, a família superou seus traumas de
férias. Fora as dores do impacto restaram lembranças e lições. No dia seguinte
estava o carro em cima do guincho quando o celular tocou. Código de área
estranho. Era o motorista do caminhão. Estava mais de mil quilômetros à frente.
Seguindo com sua carga. Queria saber como estavam as crianças. Como estava a
família. Não perguntou pelo carro. O sinal estava ruim. A ligação caiu. Caiu
antes que o pai pudesse agradecer mais uma vez. Apesar de saber que os
agradecimentos ali eram desnecessários. Implícitos. Porque ele sabia que aquela história era sobre
o encontro de almas boas. Porque elas se encontram. Onde quer que estejam. É a
Lei da Correspondência.
*
em homenagem ao caminhoneiro Flávio que segue sua história de alma boa.
Guilherme Augusto
Santana
Goiânia, sábado 20 de julho de 2013