sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Deus a bordo


Deus a bordo

 

          Min Sakura era dedicada. Vivia em função de suas duas paixões: o pequeno Yun e a profissão de aeromoça. Desde muito nova acalentava esses desejos. Ser mãe e voar. Dos aviões tratou logo de começar. Sob protesto de seus pais que queriam que ela fosse médica, logo que foi possível, se inscreveu em um curso de aeromoça em Tóquio. Mudou-se para capital para seguir seu sonho. Morava na casa de uma tia. Sua rotina era estudar e estudar. Só pararia quando estivesse trabalhando nos ares do mundo. Uma escala repentina na vida lhe apresentou Jun. Lindo. Dizia que era piloto de Boeing. Ela acreditou. Ele era mecânico. Ali na sala de aula do curso de instruções aéreas foi concebido Yun. Um baque. Balde de água fria nas pretensões da jovem ex aeromoça. Teria que parar tudo para cumprir o destino de criar um filho. Tomou como antecipação de seu sonho materno. Assim que tivesse condições voltaria ao ar. Assim o fez. Assim seu esforço foi recompensado com a profissão. Agora estava oficialmente no ar. Começou com as rotas mais atrapalhadas. Aquelas que ninguém queria. Ela queria. Foi subindo. Sempre que descia em terra seu tempo era para o pequeno Yun. Como ele crescia. Parecia que chegaria às nuvens. A mãe se desdobrava. Por vezes levava o filho em suas viagens só para não se desgrudar de sua educação. Determinada época, apareceu uma oportunidade imperdível. Um curso fora. Um salto na sua carreira. Mas precisava se ausentar dos cuidados do filho. Pesou todas as argumentações e com a culpa inerente às mães, resolveu abraçar o pulo profissional. Fez e foi recompensada. Promoção. Chegou na casa da tia, que havia cuidado de Yun em sua ausência, sedenta do filho. Abraçou, beijou e sem menos esperar escutou do pequeno um palavrão. Um palavrão! Aquilo lhe feriu a alma. Nunca tinha proferido sequer uma palavra atravessada em toda a sua vida e agora seu filho de pouco mais de oito anos falava aquelas atrocidades. Um punhal desferiu um golpe mortal em seu peito. Desnorteou. A culpa da ausência lhe matou. O que faria? No momento não podia fazer muito pois tinha que embarcar em voo para Manila nas Filipinas. Pensou rápido e ligou para uma amiga da companhia. Arrumou uma passagem para o filho. Não desgrudaria dele. Sob protestos a criança embarcou junto com a mãe. Ela trabalharia, mas de olho no pequeno sentado na poltrona. Matutava o que fazer. Como proceder para educar o filho que se desviara para um caminho inesperado. Inaceitável para sua criação rígida. Eis que no meio da viagem, pela madrugada, bateu-lhe uma ideia. Aproveitou que todos dormiam, menos o pequeno que se encontrava imerso no IPad, e resolveu atuar. Ligou o microfone de bordo sorrateiramente e começou a falar tentando deixar a voz mais grave: “Você que está sentado aí. Estão me ouvindo? É Deus quem fala. Estou muito descontente com os palavrões que anda falando”. O pequeno Yun se espantou. Olhava para todos os lados procurando o autor da voz. A mãe vendo que estava causando efeito continuou: “Se você não parar imediatamente com esses palavrões eu vou derrubar esse avião!”. Mais uma vez ela olhou para o filho, que não conseguia vê-la, e observou seu aceno positivo com a cabeça como se concordasse com o que a voz lhe ordenara. Pronto. Estava resolvido. Seguiu até o fim da viagem satisfeita com o resultado. Chegando em Manila esperou que todos desembarcassem para sair com o pequeno. Estampava um sorriso no rosto de missão cumprida. Nunca mais escutaria um palavrão da boca do filho. O que era uma pequena mentira, perto de um bem tão grande, não é? Quando desceu as escadas do avião passou por um aglomerado de pessoas que parecia estar em uma entrevista coletiva com alguém que descia do avião. Pensou que não teve disposição nem vontade de verificar se havia alguém importante no voo, devido à preocupação com o caso do filho. Diante disse desviou-se da turba que se amontoava em torno do cidadão e de mão dada com o filho seguiu feliz com seu broche de mãe estampado no peito.     

  

* essa é uma estória de ficção       

Manila, 28 out (EFE) - O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, prometeu parar de usar palavrões em seus discursos após ter recebido instruções de Deus, segundo informou nesta sexta-feira a imprensa local.
“Estava olhando para o céu quando Ele veio aqui. (...) Uma voz disse: 'se você não parar, vou derrubar este avião’, narrou Duterte, em uma coletiva de imprensa, ontem à noite, no retorno ao seu país após uma viagem oficial de três dias ao Japão.

‘E eu perguntei 'quem fala?'. Certamente era Deus. Eu disse para Ele que não falaria mais gíria e nem palavrões", afirmou o presidente filipino, de acordo com a emissora "ABS-CBN". (UOL notícias)

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 28 de outubro de 2016

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

como é que se diz "eu te amo"


Como é que se diz “eu te amo”

         

Esses dias atrás completaram-se vinte anos da morte de Renato Russo. Logicamente que passei o dia todo a escutar suas músicas. Relembrando. Eis que me aconteceu um fato estranho. Cada canção que escutava me remetia a uma fase da vida. Um momento. Uma recordação. E na singularidade de lembranças, algo era constante. A turma. A mesma turma. Formada na década de 80 no Colégio Agostiniano. Entre idas e vindas eles sempre estiveram presentes na minha vida.  

“O sistema é maus, mas minha turma é legal. Viver é foda, morrer é difícil. Te ver é uma necessidade. Vamos fazer um filme”. Fizemos um filme. O nosso filme. Crescemos e aparecemos. É verdade. Mas sempre que nos encontramos voltamos a ser adolescentes. Gritos, abraços, melodrama, posse, amor. Faltam só as espinhas na cara. Coisa de gente que se entende só de olhar. Olhamo-nos. Curtimo-nos. Ao vivo ou pelas redes. Um mundo à parte.

Todos os dias quando acordo. Não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo”. Naquela época achávamos que éramos imortais. Quanto engano. Mas muitos duvidavam da imortalidade de nossa amizade. Quanto engano. Resistiu ao tempo e a distância. Somos poucos em muitos lugares. Somos todos no mesmo lugar. Sempre. Com certeza a Lei do Tempo, inexorável, fez com que o mesmo passasse para todos, mas ela, a amizade, parece resistir a corrosão da lei temporal. É mutável mas ao mesmo tempo original. O andado dos ponteiros do relógio marcou nossas faces mas ainda resta todo tempo do mundo para sermos amigos.

“Esse é o nosso mundo. O que é demais nunca é o bastante. A primeira vez é sempre a última chance”. Muitas vezes nos escondíamos dentro do próprio colégio para estar mais perto. Como se deixássemos de ser grudados alguma hora do dia. Ficávamos ali uns olhando para os outros as vezes sem dizer nada. Uma palavra. Várias palavras. Em um grito uníssono que levava a sermos descobertos. Batíamos em fuga procurando outros lugares para esconder. Esse era o nosso mundo. Quanto mais perto mais perto. Resistíamos aos dias e as noites. Parecíamos brincar com a tempo. E era o tempo que brincava conosco. O que para muitos parecia demais, para nós não era o bastante. “Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?”. Será? O que era dúvida virou certeza. Realização. Cada um a sua maneira se tornou gente. Gente boa. Resistimos a separação. Mas continuamos nos procurando. Nos falando. nos vendo. Voltando a ser o mesmo corpo. A mesma turma. Só usando de muita imaginação. De muita emoção. De muito coração. “E nesse dias tão estranhos” enquanto escuto Renato Russo, bate uma vontade irresistível de estar junto deles e dizer o quanto eu os amo.        

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 21 de outubro de 2016

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Minha maior professora


Minha maior professora

 

          Diz o ditado que citar a mãe no discurso tem que ser no final, porque aí começa o choro e dá-se por encerrado a oratória. Eu preferi arriscar. Já começo no modo power de emoção. Hoje falarei de mamãe. Esperem que vou ali enxugar as lágrimas e já volto. Falo dela porque se aproxima seu aniversário. Coincide com o dia dos professores. E aí me coloquei a pensar numa maneira de homenagear os professores e não achei melhor. Falarei da maior. Da melhor. Da que me ensinou a viver. Pausa para enxugar as lágrimas de novo. Vamos lá.

 

1)    Mamãe me ensinou a ser observador.

 

Lá em casa o costume era viajar à fazenda nos finais de semana. Coisa de família goiana. Quando criança era super legal, mas foi chegando a juventude e as festas passaram a ser mais atrativas. Em um determinado momento solicitei aos meus pais que eu pudesse ficar na cidade ao invés de ir a fazenda. Só algumas vezes para não ser o excluído da turma, o que não ia as festas e outras chantagens emocionais baratas. Depois de muito tentar deu certo. Depois de recomendações mil deles, consegui ficar sozinho em casa. Aí vinha o capeta e chamava todos os amigos para uma festinha de comemoração. E aí o fim de semana explodia em alegria. No domingo à noite, minha mãe chegava e só comentava: Fez festa em casa né? Foi animada? Eu ficava intrigado pois tinha apagados todos os vestígios que caracterizasse algum tipo de aglomerado de pessoas. Isso foi uma, duas, três vezes. Muitas vezes. Quebrava a cabeça para descobrir de onde ela tirava essa informação. Cheguei a acreditar em sexto sentido de mãe. Foi quando um dia ela me contou. Lá em casa tinham alguns tapetes na sala. Esses tapetes tinham franjas. Quando ela saia na sexta-feira, penteava as franjas. Quando voltava no domingo, as mesmas estavam todas despenteadas. Muita gente transitando. Conclusão: festa. Vejam se não é um ensinamento precioso esse da observação?!

 

2)    Mamãe me ensinou a adaptação.

 

Eu era daquelas crianças chatas para comer. Inimigo número um das coisas verdes. Daqueles que ficava com o prato todo cheio de salsinha nas bordas. Cebola, alho, cheiro verde, frutas, folhas... nada disso fazia parte do meu cardápio. Sem falar na carne cozida, costela e essas proteínas que não tem aparência de bife de filet. E como uma boa mãe, a minha tentou à exaustão mudar essa atitude. Por vezes com paciência, explicação e algumas com a chinela na mão. Mas nada que desse jeito. Quando passei na faculdade fui estudar no Campus da UFG. Longe absurdo. Período integral. Pensa se mamãe dava dinheiro para almoçar em algum lugar decente para meu nível de exigência?! Não! Hora de aprender a se adaptar. Comer no Restaurante Universitário. O famoso bandejão. Aí é que o filho chora e a mãe não vê. É cada quitute que vem no seu prato... dava saudades imensas da carne de panela da mamãe. Bem temperada com cebola e cheiro verde. Hummm... deu água na boca. Muitas vezes tive que matar a carne no meu prato por achar que a mesma ainda continuava viva. Pois foi que aprendi a Lei da Adaptação. Hoje como quase tudo graças a mamãe.

 

3)    Mamãe me ensinou a ser comedido.

 

No idos da década de 80, todos eram fã de Michael Jackson. Pelo menos a maioria. Na época que ele ainda não tinha inventado aquela pataquada de ficar branco. Tempos de Billie Jean e Thriller. Ficava horas na frente da TV assistindo os clipes gravados em VHS (meu pai trouxe um vídeo cassete da Zona Franca de Manaus que pesava meia tonelada) e tentando imitar seus passos. Depois ia para as festinhas e não ia para a pista dançar de vergonha. Um certo dia a escola onde eu estudava, por conta da febre do break, lançou um concurso de dança. Pronto. Era o palco que eu podia exercitar a minha prática em MJ sem passar muita vergonha. Foram acontecendo as classificatórias do concurso e eu fui passando até chegar na final. Foi quando fiz a proposta à mamãe. Queria fazer permanente no cabelo para ficar com os cachos igual ao pop star (não acredito que estou contando isso numa crônica). Ficar igual um poodle, sabe?! De qualquer forma minha mãe, muito sábia, não permitiu. Lançou mão do gumex (quem não souber do que se trata procura no google) e fez os cachos. Ganhei o concurso e preservei meu cabelo. Olha se isso não é uma lição de parcimônia e equilíbrio. Sem isso hoje eu poderia estar careca.

 

Ao final penso que daria um livro se juntasse todos os ensinamentos que recebi de minha mãe. Na verdade, eles se transformaram em um livro de história. A minha história. E agora a história dos meus filhos, porque se ela foi uma grande mãe (e ainda o é), imaginem o quão grande avô ela não se tornou?! Além de tudo isso uma filha amorosa e presente. Uma esposa companheira e leal. Sempre franqueando a todos os que estão próximos, não somente seus filhos, a bondade e amabilidade que sempre lhe foram característica. Espero mamãe (é assim que ela gosta de ser chamada), que todas essas coisas que me ensinou com tanta paciência tenham me tornado, ao menos, metade de tudo que você é. Se for assim já estarei satisfeito. E vamos parando por aqui que preciso enxugar minhas lagrimas.  

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 14 de outubro de 2016

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O Rio de Janeiro continua


O Rio de Janeiro continua (Não entendi esse título, papai)

 

          Tem uma pequena de onze anos aqui em casa, que descobriu que o pai escreve crônicas. Resolveu que quer escrever uma em conjunto. Sendo uma boa ideia, resolvido está. Então não estranhem qualquer coisa que saia do contexto a que estão acostumados, porque o que se segue está escrito a quatro mãos. Uma crônica em dueto.

Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que desci no Rio de Janeiro. Até porque não tem muito tempo. Pouco menos de duas décadas. Assim que a aeronave se aproximou da cidade começou a tocar o “samba do avião” do Tom e uma luz diferente invadiu as minúsculas janelas do aparelho. A visão do Cristo Redentor, `Pão de Açúcar, Ponte Rio-Niterói e os incontáveis recortes de costa e mar serpenteados pelos morros, faziam jus as inúmeras canções que tinha ouvido sobre a cidade. Realmente ela era bela. De perder o folego de tão bela. O piloto do avião parecia, numa liberdade poética, achar o mais lindo ângulo para pousar, enquanto as máquinas fotográficas tentavam captar um átimo daquela embasbacante beleza. Ainda hoje não consigo deixar de ficar estupefato quando desço no Galeão ou Santos Dumont. Penso que os portugueses quando chegaram àquelas terras pela primeira vez (logicamente que não de avião), devem ter sentido o mesmo que eu senti e que muitos brasileiros e estrangeiros também.

Essa semana estive lá novamente. Estivemos lá. Passeio em família. Pegamos dias nublados e chuvosos. Nada que encubra a beleza da cidade (Não pudemos ir à praia infelizmente). Estando sem praia, o jeito é improvisar. Museu de História Natural na Quinta da Boa Vista para uma injeção de História (os meninos adoraram). Museu do Amanhã na Praça Mauá e uma ode de Santiago Calatrava ao futuro. Feijoada no Bar do Mineiro em uma das ladeiras estreitas de Santa Tereza. Teatro infantil itinerante (divertido) no Museu das Ruinas. Passeio do revitalizado bondinho nos arcos da Lapa (parece mais montanha russa). Café da manhã de barão no Parque Lage (com direito a todas as comidas do cardápio. Uma delícia). Não bastasse a quantidade de opções de beleza natural a se visitar, encontramos uma profusão de história, tradições, gastronomia, cultura, tudo misturado num caldeirão e temperado com o bom humor do carioca.

Fico imaginando aqui com meus botões (não sei o que significa essa expressão) como foi difícil a mudança da capital para Brasília. Imagino também o emburro (risos) que os funcionários públicos, habituados ao mar, ficaram ao se deslocar para o planalto central seco e quente. Como é difícil abandonar aquela cidade. Ainda mais depois de uma olimpíada que cuidou tão bem do Rio (mas teve muita coisa que não mudou). Mas, em contraponto, temos que convir que eles vivem por lá em uma dicotomia diferente do restante do país. A convivência com o tráfico de drogas e a contravenção é mais constante. Mais próxima. Faz parte do cenário. Tudo se mistura. E também não contamos aqui, as inúmeras administrações populistas e experimentais que colocaram a cidade em maus lençóis. Há tempos sofrem com isso. Pensando bem tinha tudo para dar errado. Mas parece que ao final tudo de bom e ruim se mistura. Tudo se apazigua. Tudo acaba sendo abençoado e perdoado pela estátua branca de braços abertos sobre a Guanabara. E o Rio continua lindo.   

 

ps. Entre parênteses estão as impressões da coautora. Riscado estão os trechos que a coautora vetou por achar chato. Ela queria que encaixassem as palavras “unicórnio” e “coxinhas” no texto, mas não achei onde.        

      

    

Guilherme Augusto Santana e Helena Costa Santana

Goiânia, sexta feira 07 de outubro de 2016