sexta-feira, 10 de março de 2023

 

Sobre vida, morte e sapatos

Hoje o dia amanheceu daquele jeito. O caos completo. Problemas em todas as pontas. Antigos e novos, todos resolveram dar as caras nessa sexta feira embaçada. E nem bem o dia esquentou, já estou sentado na minha sala, olhando pela janela e pensando em chutar o pau da barraca antecipando assim o fim de semana. Como se isso fizesse todas as intercorrências sumirem. Nesse devaneio matinal, avistei da janela uma família que chegava para um velório (relembrando que trabalho em um cemitério) e, já ao pé da escada, se abraçavam em meio a lágrimas de despedida. Uma cena cotidiana para quem tem por ofício proporcionar a guarda de memórias sob sete palmos. Lembrei-me do Seu Vilmar sapateiro na hora. Uma pequena explicação sobre seu Vilmar: possui uma banca de engraxar sapatos em uma praça muito tradicional em Goiânia. Daquelas figuras pitorescas da cidade. Depois da digressão volto à lembrança. Esses dias estava entre um compromisso e outro no centro da cidade e passei na frente da banca do Seu Vilmar. Tinha tempo que não engraxava sapato então resolvi, de impulso, parar. Ele me atendeu com a simpatia de sempre. Senta, prepara, graxa. A princípio em silêncio. Ambos. Uma pessoa entra na banca e entrega uma sacola e um copo de café. Ressalta: Vilmar aí tem um enroladinho de queijo quentinho e um café. Depois dos agradecimentos e da saída do cidadão, pergunto se era cliente. Sim há 18 anos. Fala com a boca cheia de orgulho. Puxo o fio do assunto. Desde quando está nesse ponto engraxando? Esse ano fazem 24 anos. Aliás esse mês completa aniversário. Demonstro minha surpresa e pergunto se hoje estava melhor ou pior do que no tempo em que ele começou. Ele comenta melancolicamente que antigamente era melhor. Mais pessoas e menos carros. De bate pronto me pergunta se sou advogado. Devo ter cara de. Abro um sorriso e conto-lhe meu ofício. Coveiro. Ele responde o sorriso e abre a caixa de dúvidas. Tudo isso enquanto a flanela canta no sapato. Tinha dúvidas sobre cremação. Perguntou e eu respondi. Então como num passe de mágica, o que ocorre na maioria das vezes com pessoas que conversam com coveiros, começou a explicar sua relação com a morte. Disse que não a temia. Que tinha mais receio de ficar inválido do que de morrer. Começou a passar a graxa e contou sobre como cuidou de pai e mãe nos momentos finais. Partiram e ele ficou tranquilo. Sensação de missão cumprida. Disse que nem chorou. Quem chora muito em enterro é porque ficou devendo algo ao defunto. Boa tese. Disse ainda que valia era viver. Viver bem. Trabalhar. Conhecer e servir pessoas. Nas últimas flaneladas de polimento do sapato aproveitou para finalizar sobre como gostava daquele lugar, mesmo tão mudado de quando ele iniciou o ofício. Finalizou, paguei, despedi e parti. Ele ficou. Continuava o ofício e o gosto pelo trabalho e pelas pessoas. Quando, voltando ao começo da crônica, lembrei do Seu Vilmar, o que me puxou foi a cena do choro da família diante da morte que via da janela, porém estava enganado. Apesar de termos falado sobre morte e sapatos, o que me puxou naquele momento foi a vida. Expressa em palavras simples e singelas, porém de uma transcendência ímpar. A vida vivida nessas dezenas de anos com seu trabalho e as pessoas a mudarem ao seu redor. A vida com seus problemas e suas satisfações.

 O céu aqui continua embaçado e os problemas permanecem os mesmos. Talvez o que tenha mudado seja a forma de como encará-los. Resignação por não poder desnublar o dia, mas resiliência para poder iluminar a vida.

Guilherme Augusto Santana

10/03/2023