Caridade
Ele
tinha conseguido tudo que um homem podia almejar. Nada lhe escapara a posse.
Nem recursos materiais nem de notoriedade e respeito perante os seus. Só uma
coisa o incomodava: Não era um caridoso convicto. Tinha apego demais. Guardava
o que era seu a ferro e fogo. Era tão incomodado que um dia resolveu resolver.
Saiu em peregrinação buscando solução para sua inquietação. Foi até as
universidades mais aclamadas do planeta, buscou conselhos nos sábios desse
mundo e nos de além-mundo. Nada de encontrar a tal fórmula que tanto o
incomodava. Até que um dia ficou sabendo que no alto de uma montanha, lá bem no
alto, vivia um velho sábio que teria a resposta às suas agruras. Não hesitou em
empreender jornada e se encarapitar pelo arranha céu levando consigo toda a
esperança de mudança.
Foram dias e noites de
provação e privação pois a montanha era de todas a mais alta. Sem hesitar em
seu propósito encontrou o homem a quem procurara ansiosamente, sentado na porta
de sua cabana. Não mais que de repente foi se apresentando e logo dizendo de
suas intenções naquela tão dificultosa peregrinação. O sábio esperou que aquele
estranho vomitasse todas as suas façanhas e entranhas e muito calmamente perguntou
se o viajante afoito tinha um copo. O candidato a caridoso respondeu
afoitamente que sim e de imediato estendeu-lhe sua caneca que trazia pendurada na
mochila. O sábio então pegou ao lado uma jarra grafada com a palavra “caridade”
e fez menção de encher a caneca do homem. Porém nada havia na jarra e por isso
o copo permaneceu vazio. Disse então ao viajante que descesse a montanha e
pensasse sobre aquilo. O homem, meio decepcionado, seguiu a recomendação e
descambou montanha abaixo. Passou dias a meditar sobre aquele mistério da jarra
e da caneca. Quase fundiu a mente tentando entender o que aquela peça tinha a
ver com seu desejo. Nada achou.
Não aguentando mais de
ansiedade voltou a subir a montanha em busca de resposta para a misteriosa resposta
que obtivera. Mesmo percurso feito com as mesmas dificuldades, achou o sábio no
mesmo lugar. Derramou todos seus pensamentos e conclusões e não conclusões. O
homem sábio esperou o dilúvio de dizeres e então, harmoniosamente, lhe disse
que havia aprendido o primeiro segredo da caridade: “Não pode dar aos outros
aquilo que você não tem”. E de imediato perguntou ao viajante se ele tinha um
copo. Novamente o candidato estendeu-lhe a caneca. O sábio laçou mão da jarra
da caridade e a entornou na caneca, vertendo na mesma, algumas moedas de
pequeno valor que se depositaram no fundo. Sob o olhar incrédulo do viajante, o
velho sábio ordenou que descesse a montanha e refletisse sobre aquilo.
Obediente no propósito o homem cumpriu as ordens mesmo sem entender patavinas
do que acontecia. Abaixou a cabeça e rompeu montanha abaixo.
A curiosidade o levou
novamente a enfrentar as intempéries da jornada e buscar respostas para suas
inquietações. Não entendia porque o sábio havia lhe dado aquelas moedas de
valor insignificante sendo que abastado era por demais, consequentemente
desnecessitando daquela “esmola”. E mais ainda curioso ficou em entender qual a
relação daquele gesto com a tal caridade tão almejada. Logo que encontrou o
sábio e verteu verborragicamente suas dúvidas, escutou, muito parcimoniosamente,
que havia aprendido o segundo segredo da caridade: “Deve fazer o bem olhando a
quem, para que tenha certeza que esse bem será realmente aproveitado”. Então o
sábio de imediato, sem esperar e nem deixar que manifestasse reação, perguntou
se o viajante tinha um copo. O homem ainda tonto lhe estendeu novamente a
caneca. O sábio fez um furo no fundo da mesma e, lançando mão da mesma jarra, despejou
um líquido dentro da caneca. Entregou ao dono e solicitou que ele descesse a
montanha e refletisse. O homem se virou em retirada tentando a todo custo
tampar o buraco para evitar que o liquido se esvaísse. Em vão. Na metade da
travessia a caneca estava vazia. Concluiu que aquele líquido seria o elixir da
caridade e que ele o havia deixado escapar. Apressadamente desceu a montanha e
tratou de comprar uma caneca bem forte que evitasse a perda do precioso bálsamo.
Pensou que na próxima vez o velho não o pegaria de jeito.
Não tardou muito a
empreender nova e decisiva subida. Após os mesmos percalços, deteve-se de novo
com o velho e lhe contou, sob atropelos, que achava ter entendido a parábola
ofertada pelo sábio. Foi então que escutou, generosamente, ter aprendido o terceiro
segredo da caridade: “A mente de quem recebe a caridade tem que estar preparada
para tal, senão o bem se perderá”. E antes que o sábio perguntasse se possuía
um copo, o viajante lhe estendeu a nova caneca. Então, mais uma vez, o velho
pegou a caridosa jarra e derramou um líquido dentro da caneca. Recomendou novamente
que o viajante descesse a montanha e refletisse sobre aquilo. Não mais que depressa,
convicto que possuía o elixir da caridade, o homem virou as costas e seguiu
montanha abaixo. Na primeira curva se deteve e sorveu apoteoticamente o líquido
da caneca. Não deixou nem uma gota para trás. Sentindo-se resoluto continuou a
descida rumo aos portões da glória completa. Chegou ao pé da montanha semimorto.
Por
tempos permaneceu hospitalizado sem saber que mal o havia acometido. Nem o
plantel de notórios médicos bem pagos puderam identificar as causas de
despropositada enfermidade. Até que um dia, enquanto repousava em seu catre, a
porta se abriu silenciosamente e por ela entrou o velho sábio. Sem ser notado
pelos presentes que preocupados estavam em desfiar as notícias do dia, se
dirigiu até a beira do leito de morte e fez sua pergunta de praxe pelo copo. O
moribundo sem entender o proposito e juntando as escassas energias que lhe restavam,
pegou na cabeceira a malfada caneca e estendeu ao velho. O mesmo retirou do
alforje a jarra grafada com a tão almejada palavra “caridade” e despejou seu
brilhante líquido dentro da caneca e a entregou ao enfermo. Ainda receoso pelos
últimos acontecimentos, o homem hesitou em beber da caneca, mas em rápida
análise de não haver nada mais a perder, o fez de um gole só. Nesse momento as
cores voltaram a sua face e começou a sentir novamente os vigores de outrora.
Foi então que o sábio, caridosamente, se aproximou do seu ouvido e disse-lhe
docemente: “aprendeu o quarto e último segredo da caridade”. “É preciso ter
consciência do bem antes de prodigá-lo. Caso contrário poderá estar doando a
outrem, ao invés do elixir imaginado, um veneno letal”. Virou as costas e saiu
silenciosamente pela porta como havia entrado, restando sobre o criado ao lado
da cama, a jarra e a caneca.
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 09 de junho de 2017