sexta-feira, 6 de outubro de 2017

ser criança?


Ser Criança?

 

          Ontem eu fiz doze anos. Foi bem ontem. Muita gente me disse que com doze anos as coisas começariam a mudar. Então hoje acordei animado. Bem animado com as tais mudanças. Assim que abri os olhos comecei a observar. Estava do mesmo tamanho, o meu cabelo estava bagunçado como todas as manhas e o meu bafo continuava o mesmo... preciso escovar os dentes. Cadê as mudanças? Será que estavam debaixo do travesseiro? Cheguei a verificar se não estavam realmente debaixo do travesseiro. Darrrrhhh. Trouxa. Mas pensando bem, será que quero realmente mudar? Gosto tanto das minhas roupas. Que coisa difícil esse negócio de mudança. Não sei se quero ou não. Mas será que posso escolher? Tem algum botãozinho que eu possa apertar: “Não mudar, obrigado”? De todo modo como não teve mudança nenhuma é melhor eu levantar dessa cama, senão daqui a pouco meu pai vem me levantar à força. Porque eu tenho que sair da cama? Porque eu tenho que abandonar o meu edredom quentinho? Ele sente minha falta. O edredom. Coitadinho. Escutei barulho do meu pai. Melhor eu levantar. Vou fingir que estou espreguiçando. Será que meu pai vai acreditar? Será que meu pai acredita em mim ou ele finge que acredita? Às vezes acho que meus pais são espiões. Sabem até o que eu penso. Será que eu sei o que eu penso? Será que eu penso? Claro né! Darrrrhhh. Você aprendeu na escola que é um animal racional. Que pensa. Às vezes é tão bom não pensar. Por exemplo agora não quero pensar na escola. Melhor eu levantar porque senão atraso para a escola. E aí vou ter que esperar começar a segunda aula. E vou ganhar bronca. Porque adulto adora dar bronca em criança? Deixa estar que quando eu mudar ninguém mais vai me dar bronca. Eu que vou dar bronca. Vou dar bronca nos meus filhos. Não! Não vou dar bronca nos meus filhos! Vou deixar eles fazerem o que quiserem. Menos matar aula claro. Porque eles têm que aprender. Mas eu já sei tudo então porque preciso ir à escola? Queria saber quem inventou a escola. Garanto que ele não foi a escola. Nem à aula de Geografia. Não sei porque temos que estudar Geografia. Melhor eu levantar da cama antes que a geografia da voz do meu pai comece a me gritar. Pensando aqui, se eu acordo cedo, meu pai deve acordar ainda mais cedo. Porque ele arruma meu café. Tá certo que nem sempre ele acerta o que eu gosto. Mas ele tenta. E levanta mais cedo. Seria tão mais fácil se ele fizesse todo dia waffle com Nutella... Hummm deu água na boca. Se eu soubesse que ele tinha preparado meu café da manhã preferido levantava correndo dessa cama. Mas meu pai fala que Nutella não faz bem para minha saúde. Pior que ele deve ter razão. Meu pai sabe um monte de coisas. Até nó de marinheiro ele sabe. Mas é tão bom... a Nutella. Quase até melhor que o sorriso da Alice. O sorriso da Alice lambuzado de Nutella deve ser irresistível. E ela gosta de Geografia. Preciso estudar mais para poder impressionar na aula. Falar lá umas capitais. Uns relevos. Quem sabe a Alice olha para mim? Preciso pentear o cabelo hoje porque se ela me olha desse jeito vai se assustar. Não entendo porque penteamos o cabelo se depois bagunça tudo de novo. Falar em estado, estou quase em estado de pedra aqui nessa cama. E nem cresci o tanto que dizem que vou crescer. E nem começou a tal mudança. E nem veio a liberdade que disseram que viria. Estou achando que esse povo anda me enganando. Passando mel na minha boca. Melhor se fosse Nutella. Melhor se fosse a Alice na aula de Geografia. Melhor se eu crescesse logo e as mudanças trouxessem liberdade. Melhor se eu começasse a pensar em levantar dessa cama antes que meu pai venha aqui pela sexta vez. Melhor eu me preparar porque o dia vai ser punk. Ainda nem levantei e já estou cansado. Posso voltar para a cama?          

   

           

Guilherme Augusto Santana

santanagui@hotmail.com

06/10/2017