Pausa
para ver as nuvens
Hoje
de manhã, como de costume nos últimos seis meses, madruguei no aeroporto.
Munido de mala de mão e mochila, já decorei os apelos da companhia aérea
alegando que o avião está com alta ocupação, então entra por um ouvido e sai
pelo outro. Vou despachar mala não. Tenho que chegar no destino, sair correndo
do avião, alugar o carro e partir para o objetivo, qual seja, trabalhar. Por
isso sento impreterivelmente no corredor mais à frente. Desembarque, quando
autorizado, somente pela porta dianteira. Tudo cronometrado. Levo um livro de
Logosofia para estudar e o computador para adiantar o serviço a bordo. Saco do
fone de ouvido, isolo-me do ambiente, ligo o PC e quando vejo já estamos
pousando no destino. Nada longo. Hora e pouco de voo, mas como tem se tornado
constante, utilizo o avião como escritório. O máximo que desconcentro é para
atender o serviço de bordo oferecendo água e dar um bom dia ao companheiro da
poltrona vizinha.
Mas
hoje de manhã foi diferente. Entrei no avião primeiro (por conta do cartão de
fidelidade da companhia aérea e não por ser da fila “P” de prioridades prevista
por lei. Ainda não), sentei como de costume no corredor à frente, pluguei o
fone de ouvido no canal de notícias, abri o computador até o fecharem portas da
aeronave. Os aparelhos eletrônicos devem ser mantidos em modo avião. E vai
entrando gente. E de repente chega meu companheiro de fila. Pede licença, e eu
numa rapidez meteórica, recolho fone, computador, levanto, dou passagem e me
sento novamente. Abro o computador e recoloco o fone de ouvido. Eis que surge a
primeira frase do cidadão: “é a primeira vez que ando de avião. Será que cai?”.
Os pensamentos logo pulularam na minha mente, pois responder à pergunta naquele
momento batia de frente com meu “way of flylife”. Mas como percebi que o senhor
(depois vim saber que ele tinha a mesma idade minha. Será que as pessoas também
me veem como um senhor?) estava meio
nervoso, retirei os fones, fechei o computador novamente e tentei falar algumas
palavras de conforto: “calma senhor, eu viajo toda semana e o avião nunca caiu”.
Logicamente que minha intenção era finalizar aquela conversa ali e voltar à
programação normal. Ledo engano. Foi aí que o homem destampou a falar. Descobri
que era da cidade de Belo Jardim, estado de Pernambuco. Pertinho de Caruaru.
Mas estava morando em Gurupi, Estado do Tocantins. Contou-me que era professor
de música lá. Dava aulas para crianças. Contratado como temporário pelo
município. Explicou-me a diferença entre funcionário público concursado e
contratado por tempo determinado. Falou-me que dava aula de qualquer
instrumento mas era bom mesmo nos de sopro. Explicou-me sobre teoria musical e
a dificuldade de se tocar bateria. Falou que saiu da cidade natal por conta de um
amigo major do exército que o tinha convidado para ser professor de música.
Disse ainda que o dito major tinha capotado o carro na estrada quando tinha ido
busca-lo para a mudança. Capotou o carro com a esposa e o filho de dois meses
dentro. Ninguém havia se ferido. Ele mesmo queria ser militar. O cidadão. Mas
tinha sido dispensado na junta militar da cidade natal. Antes tivesse se
alistado na capital. Falou que a aposentadoria de militar era boa. Que eu devia
colocar meus filhos na escola militar para estudar música. Lembrou-me mais uma
vez que era a primeira vez que voava de avião. A esposa dele também nunca tinha
voado e pediu que ele ligasse quando chegasse ao destino. Estava preocupada. E
tinha um filho de cinco anos. E reclamou quando peguei uma balinha do serviço
de bordo alegando que levaria para meus filhos: “se eu soubesse tinha pegado
uns cinco pacotes para meu filho. Será que precisa guardar na geladeira?”.
Perguntou a aeromoça. Ela explicou com toda paciência que não. Relatou logo
após que tinha saído de Gurupi de ônibus até Palmas. Passagens todas compras
com dinheiro emprestado do amigo major. Pagaria em suaves prestações. De lá
avião até Goiânia. De Goiânia um voo até Belo Horizonte. De BH outro voo até
Recife. Um amigo do irmão o pegaria de carro e levaria até Caruaru. De lá o
irmão o levaria a Belo Jardim. Fiquei com pena: “mas para que essa saga?”.
Baixou o tom da voz e disse que tinha falado para a mãe ao telefone: “mãe, não
deixa papai ir. Segura ele”. Estava indo para o enterro do pai. A pena
triplicou. Perguntou o que eu fazia. Engoli seco e respondi sem graça que
trabalhava com cemitérios. Ele espantou-se. Contou dos irmãos. Vários. Um já
tinha morrido. Bebia demais. Era o único musico entre todos. Olhou as nuvens e
perguntou que altura estávamos. Mostrei o mapa na tela. Indagou porque voar
acima das nuvens. Tentei explicar. Disse que as nuvens pareciam feitas de algodão.
De repente calou-se e dormiu. Por hora esqueceu a agonia de voar pela primeira
vez tentando chegar ao enterro do pai a tempo. Pensei logo em retomar minha
jornada habitual, mas as nuvens me chamavam a contemplação. Brancas e macias
como algodão. Havia me esquecido disso. Dessa sensação de fazer algo fora do
script. De passar prazo observando as coisas triviais da vida. E assim fiquei
até ele acordar no pouso. De novo a preocupação do que fazer em seguida. Tentei
tranquiliza-lo. Iria ajudar. Descemos e logo busquei informações do voo dele
que seguiria até Recife. Ainda tinha duas horas de espera no aeroporto. Eu
permaneceria em Belo Horizonte. Perguntou se no outro voo serviria almoço. Tive
que lhe dar a má notícia que no máximo balinhas de gelatina e goiabinha
integral. Ele estendeu a mão. Agradeceu. Desejei-lhe boa viagem. Parti. Ele ficou.
Em mim uma sensação de querer ficar mais lá e escuta-lo. Deixar o computador e
os fones dentro na mochila, tomar um café demorado e saber mais da sua vida.
Mas faltou a resolução. Virei as costas e segui meu rumo. Mas não sem antes olhar
pela janela da sala de embarque e pensar que há tempos não observava as nuvens.
Como eram parecidas com algodão. Brancas e macias.
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, terça-feira 26 de fevereiro de
2019