A ida do boêmio
Precisei abrir uma cerveja gelada e colocar uma
música na playlist para conseguir escrever esse obituário em forma de crônica. Não
uma cerveja qualquer, mas uma Antárctica, como nos velhos tempos. E muito menos
uma música qualquer, senão Nelson Gonçalves. Uma homenagem. Já peço desculpas
por escrever de forma tão pessoal e introspectiva, mas é que o coração
necessita.
“Boemia,
aqui me tens de regresso
E suplicante
lhe peço a minha nova inscrição
Voltei, pra
rever os amigos que um dia
Eu deixei a
chorar de alegria
Me acompanha o
meu violão”
Foi assim a minha primeira
impressão do Ferola. Melhor. Do Tio Ferola. Aquele boêmio que chegava nas
festas a entoar as músicas de seresta com sua voz grave e seu tom embriagado.
Cena de assustar as crianças e corar as carolas. Profano como a terça de
carnaval. Santo como o canto do barítono. Porém nunca ignorado. Presente como a
chaga mais dolorosa ou o sorriso mais caloroso. Sempre esperei sua entrada
triunfal como se chegasse de uma cena de Jorge Amado a encher o ambiente de
música e alegria. E foi assim que ele foi entrando em minha vida. Com uma
alegria que me fazia alegre.
A segunda impressão foi quando,
por ocasiões de férias escolares antecipadas, fui “trabalhar” na Caneta
Dourada. Patrimônio e tradição familiar e goianiense. Ali na rua do lazer
encrustada entre a 3 e a Anhanguera. Perto do caldo de cana com pastel que
desfrutava com os trocados que ele me dava nos intervalos da lida. O Tio Ferola
comerciante. Vendedor. De canetas e almas. A ensinar um pequeno garoto burguês
o barulho da máquina registradora e o cheiro das notas recém impressas.
Inúmeras vezes vi os amigos chegarem à loja e chamarem Ferola ao escritório. Um
sem par de vezes. Quando questionei onde ficava o raio do escritório, descobri
que se tratava do Café Central. Escritório de interlocutórios fraternais.
Quantos amigos presenciei solicitando por esse café, e ele com paciência,
mandando cuidar da lojinha enquanto ia ao escritório. Jason, Orlando, Antônio,
João, José, Aristides, Muitos. Todos tios. Sempre esperei a chegada deles como
uma cena de cinema em preto e branco a encher o ambiente de amizade e
cumplicidade. E assim ele foi entrando na minha vida. Com uma amizade que me
fazia amigo.
Não tardou estarmos mais juntos. Na
terceira impressão. Elogiava minhas “petições” falando que muito advogado não
escrevia com tal clareza. Ainda mais para um engenheiro de formação. Eu
acreditava. Sabia que no fundo o afeto falava mais alto. Esse afeto que ele
tinha de graça. Uma capacidade de elogiar as qualidades e relevar as
deficiências que ainda não havia encontrado em ser algum. Sentia-me especial
perto dele. Quantas vezes, em começo de conversa com um estranho, não citei seu
nome para me dar a conhecer. Sou sobrinho do Ferola! Ah o Ferola! Conheço
demais. Quem não conhecia? Até meu filho mais novo que o chamava de vovó Ratatouille,
a vibrar pelas moedas que ele tirava do bolso, ofertando a criança como um
tesouro. Como não conhecer? Quando minha filha mais velha encasquetou com uma
máquina de escrever, entrei na sala do Tio
Ferola e perguntei se não sabia de
alguma peça para satisfazer a pequena milênio. Ele mais que depressa
levantou-se e abriu um de seus velhos armários e lá de dentro tirou uma velha
máquina de escrever. “Com essa eu ganhei a minha vida. Leve e entregue a
Helena”. Sempre esperei dele esses atos de afeto como nas músicas de
Pixinguinha. E assim ele foi entrando na minha vida. Com um afeto que me fazia
afetuoso.
Nos últimos tempos travamos uma
convivência pacienciosa. A quarta e última impressão. Ia quase todas as semanas
vê-lo na empresa para somente conversar. Escutar suas reminiscências e acenar
com a cabeça concordando. Que mais eu podia fazer? Restava-me a resignação de
ver um gigante no caminho do adormecimento. E nessa última impressão vi
resplandecer a paciência. Horas e horas a conversar e administrar uma tragédia
anunciada. O sonho de uma vida inteira que ruía perante seus olhos. Mesmo assim
eu aguardava
nossas conversas semanais. Essa semana eu ainda não o havia encontrado, e não
sei o porquê o coração doía. Pensei várias vezes em propor-lhe ditar um livro
de histórias de vida. Eu me disporia a escrevê-lo. Repleto de paciência como
tinha aprendido com ele. Outras vezes ficava somente a observar seus atos de
encerramento. Em algumas vezes tive a impressão que se julgava imortal, mas em
outras, via que apenas esperava o inevitável chegar. Com uma paciência
impassível. E chegou. Como uma cena de Ariano Suassuna: “Cumpriu sua
sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do
nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala
tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo,
morre.”. E assim ele entrou de vez na minha vida. Com tamanha paciência de vida
que me fazia paciencioso.
Ao final de tudo, volto a pedir as
mesmas desculpas que fiz no começo, se essa crônica pareceu tão pessoal e
intransferível. É porque o coração pediu. Já o disse. O coração suplicou por
esse desfecho. Aquele que faltou quando não estive com ele nessa semana. Uma
despedida que se fez aos poucos. A cada encontro. A cada reminiscência. A cada
conversa. A cada café na cozinha regada a história. Assim se fez a última
impressão. Cheia de alegria, amizade, afeto e paciência. Agora, com certeza,
ele irá tomar café em outro escritório junto com Seu Agenor, Dona Natália,
Pedro, Sinhana e tantos outros que foram antes para arrumar a mesa do baralho. Aqui
ficamos com a saudade eterna do Tio Ferola.
* em memória
de Ferola Torquato da Silva
Guilherme
Augusto Santana
14/02/2021