segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

a ida do boêmio

 

A ida do boêmio

 

Precisei abrir uma cerveja gelada e colocar uma música na playlist para conseguir escrever esse obituário em forma de crônica. Não uma cerveja qualquer, mas uma Antárctica, como nos velhos tempos. E muito menos uma música qualquer, senão Nelson Gonçalves. Uma homenagem. Já peço desculpas por escrever de forma tão pessoal e introspectiva, mas é que o coração necessita.

Boemia, aqui me tens de regresso

E suplicante lhe peço a minha nova inscrição

Voltei, pra rever os amigos que um dia

Eu deixei a chorar de alegria

Me acompanha o meu violão”

              Foi assim a minha primeira impressão do Ferola. Melhor. Do Tio Ferola. Aquele boêmio que chegava nas festas a entoar as músicas de seresta com sua voz grave e seu tom embriagado. Cena de assustar as crianças e corar as carolas. Profano como a terça de carnaval. Santo como o canto do barítono. Porém nunca ignorado. Presente como a chaga mais dolorosa ou o sorriso mais caloroso. Sempre esperei sua entrada triunfal como se chegasse de uma cena de Jorge Amado a encher o ambiente de música e alegria. E foi assim que ele foi entrando em minha vida. Com uma alegria que me fazia alegre.

              A segunda impressão foi quando, por ocasiões de férias escolares antecipadas, fui “trabalhar” na Caneta Dourada. Patrimônio e tradição familiar e goianiense. Ali na rua do lazer encrustada entre a 3 e a Anhanguera. Perto do caldo de cana com pastel que desfrutava com os trocados que ele me dava nos intervalos da lida. O Tio Ferola comerciante. Vendedor. De canetas e almas. A ensinar um pequeno garoto burguês o barulho da máquina registradora e o cheiro das notas recém impressas. Inúmeras vezes vi os amigos chegarem à loja e chamarem Ferola ao escritório. Um sem par de vezes. Quando questionei onde ficava o raio do escritório, descobri que se tratava do Café Central. Escritório de interlocutórios fraternais. Quantos amigos presenciei solicitando por esse café, e ele com paciência, mandando cuidar da lojinha enquanto ia ao escritório. Jason, Orlando, Antônio, João, José, Aristides, Muitos. Todos tios. Sempre esperei a chegada deles como uma cena de cinema em preto e branco a encher o ambiente de amizade e cumplicidade. E assim ele foi entrando na minha vida. Com uma amizade que me fazia amigo.

              Não tardou estarmos mais juntos. Na terceira impressão. Elogiava minhas “petições” falando que muito advogado não escrevia com tal clareza. Ainda mais para um engenheiro de formação. Eu acreditava. Sabia que no fundo o afeto falava mais alto. Esse afeto que ele tinha de graça. Uma capacidade de elogiar as qualidades e relevar as deficiências que ainda não havia encontrado em ser algum. Sentia-me especial perto dele. Quantas vezes, em começo de conversa com um estranho, não citei seu nome para me dar a conhecer. Sou sobrinho do Ferola! Ah o Ferola! Conheço demais. Quem não conhecia? Até meu filho mais novo que o chamava de vovó Ratatouille, a vibrar pelas moedas que ele tirava do bolso, ofertando a criança como um tesouro. Como não conhecer? Quando minha filha mais velha encasquetou com uma máquina de escrever, entrei na sala do Tio
Ferola e perguntei se não sabia de alguma peça para satisfazer a pequena milênio. Ele mais que depressa levantou-se e abriu um de seus velhos armários e lá de dentro tirou uma velha máquina de escrever. “Com essa eu ganhei a minha vida. Leve e entregue a Helena”. Sempre esperei dele esses atos de afeto como nas músicas de Pixinguinha. E assim ele foi entrando na minha vida. Com um afeto que me fazia afetuoso.

              Nos últimos tempos travamos uma convivência pacienciosa. A quarta e última impressão. Ia quase todas as semanas vê-lo na empresa para somente conversar. Escutar suas reminiscências e acenar com a cabeça concordando. Que mais eu podia fazer? Restava-me a resignação de ver um gigante no caminho do adormecimento. E nessa última impressão vi resplandecer a paciência. Horas e horas a conversar e administrar uma tragédia anunciada. O sonho de uma vida inteira que ruía perante seus olhos. Mesmo assim eu aguardava nossas conversas semanais. Essa semana eu ainda não o havia encontrado, e não sei o porquê o coração doía. Pensei várias vezes em propor-lhe ditar um livro de histórias de vida. Eu me disporia a escrevê-lo. Repleto de paciência como tinha aprendido com ele. Outras vezes ficava somente a observar seus atos de encerramento. Em algumas vezes tive a impressão que se julgava imortal, mas em outras, via que apenas esperava o inevitável chegar. Com uma paciência impassível. E chegou. Como uma cena de Ariano Suassuna: “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”. E assim ele entrou de vez na minha vida. Com tamanha paciência de vida que me fazia paciencioso.

              Ao final de tudo, volto a pedir as mesmas desculpas que fiz no começo, se essa crônica pareceu tão pessoal e intransferível. É porque o coração pediu. Já o disse. O coração suplicou por esse desfecho. Aquele que faltou quando não estive com ele nessa semana. Uma despedida que se fez aos poucos. A cada encontro. A cada reminiscência. A cada conversa. A cada café na cozinha regada a história. Assim se fez a última impressão. Cheia de alegria, amizade, afeto e paciência. Agora, com certeza, ele irá tomar café em outro escritório junto com Seu Agenor, Dona Natália, Pedro, Sinhana e tantos outros que foram antes para arrumar a mesa do baralho. Aqui ficamos com a saudade eterna do Tio Ferola.

 

* em memória de Ferola Torquato da Silva

 

Guilherme Augusto Santana

14/02/2021