sexta-feira, 8 de março de 2019

a oportunidade e a empada


A oportunidade e a empada

 

          Hoje a missão era espinhosa. Comprar castanhas para a esposa no mercado do centro da cidade. Quem já o fez sabe das dificuldades que estou falando. Desde movimento, trânsito, estacionamento, correria, impaciência e todos os obstáculos presentes nas idas aos centros das grandes cidades. Muitas vezes me perguntei porque ir ao centro e não comprar nos supermercados mais próximos de casa. Confesso que já refleti sobre mil justificativas como qualidade do produto, rotatividade, preço, mas no fundo não conseguia entender bem a força motriz que me conduzia a tal ato instintivo. Hoje acho que comecei a descobrir.

          Após passar pela corrida de obstáculos inerentes à missão e conseguir alcançar o objetivo traçado, deparei-me retornando ao estacionamento por um caminho menos objetivo. Algo me levava por caminhos mais tortuosos dentro do mercado. Foi quando, espantosamente, dei de cara com as famosas empadas do Alberto. Quem é glutão por natureza como esse que vos escreve, tem uma certa idade, e mora em Goiânia com certeza já provou ou ouviu falar de tal acepipe. E olha que estão naquele local desde 1947! Não podiam esperar mais para serem devoradas. Assim o pensamento defendeu a causa. E assim a faculdade de julgar deu veredito procedente e sentei-me no banco à beira do balcão. Olhei as variedades e questionei a moça do atendimento: “elas são grandes demais”. Eis que ela me responde: “bom que enche a barriga”. Convenci-me. Eu e meu pensamento. A moça era boa de argumento (quase a convidei para se juntar a mim na venda de jazigos mas achei melhor não entrar no assunto). Escolhi uma de frango com guariroba. Quem não sabe o que significa essa palavra de origem indígena, nada mais é que um palmito amargo. Pensa que foi pouco. Escolhi outra de frango com pequi. Pequi vocês sabem o que é né? É o acompanhamento mágico para frango e guariroba. Para quem achava que era grande uma empada, fiquei com duas. Enchi a barriga. Para arrematar uma coca bem gelada. Dá pequena que é para vocês não torcerem o nariz. Afinal hoje é sexta né? Para finalizar mandei embrulhar uma de cada variedade para levar para a esposa. Se ela descobre que comi empada no mercado e não levei p/ ela... ai, ai, ai.

          Saí todo “cururu teitei” do mercado com a encomenda e a não encomenda. Aí vocês devem estar se perguntando: e qual o objetivo do cronista com essa cena além de nos passar vontade com a empada? Pois calma que eu respondo: Não perder as oportunidades que a vida lhe apresenta. E não estou falando de empada nesse momento. Estou falando de um abraço apertado em um filho, de um colo de mãe, de um mimo para o cônjuge sem ele esperar, de um sorriso para uma pessoa andando apressada na rua, de uma palavra amiga a um amigo. Estou falando dessas pequenas coisas que muitas vezes deixamos passar por entendermos que são muito pequenas, mas que ao final somadas, representam a essência de uma vida. Pois como ia dizendo, saí do mercado carregando as encomendas, um sorriso largo e a sensação de ter aproveitado a oportunidade quando a vida me ofereceu. Vai que eu morro amanhã sem ter comido a empada do Alberto de novo né?         

 

   
            

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta-feira 08 de março de 2019

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

pausa para ver as nuvens


Pausa para ver as nuvens

 

          Hoje de manhã, como de costume nos últimos seis meses, madruguei no aeroporto. Munido de mala de mão e mochila, já decorei os apelos da companhia aérea alegando que o avião está com alta ocupação, então entra por um ouvido e sai pelo outro. Vou despachar mala não. Tenho que chegar no destino, sair correndo do avião, alugar o carro e partir para o objetivo, qual seja, trabalhar. Por isso sento impreterivelmente no corredor mais à frente. Desembarque, quando autorizado, somente pela porta dianteira. Tudo cronometrado. Levo um livro de Logosofia para estudar e o computador para adiantar o serviço a bordo. Saco do fone de ouvido, isolo-me do ambiente, ligo o PC e quando vejo já estamos pousando no destino. Nada longo. Hora e pouco de voo, mas como tem se tornado constante, utilizo o avião como escritório. O máximo que desconcentro é para atender o serviço de bordo oferecendo água e dar um bom dia ao companheiro da poltrona vizinha.

          Mas hoje de manhã foi diferente. Entrei no avião primeiro (por conta do cartão de fidelidade da companhia aérea e não por ser da fila “P” de prioridades prevista por lei. Ainda não), sentei como de costume no corredor à frente, pluguei o fone de ouvido no canal de notícias, abri o computador até o fecharem portas da aeronave. Os aparelhos eletrônicos devem ser mantidos em modo avião. E vai entrando gente. E de repente chega meu companheiro de fila. Pede licença, e eu numa rapidez meteórica, recolho fone, computador, levanto, dou passagem e me sento novamente. Abro o computador e recoloco o fone de ouvido. Eis que surge a primeira frase do cidadão: “é a primeira vez que ando de avião. Será que cai?”. Os pensamentos logo pulularam na minha mente, pois responder à pergunta naquele momento batia de frente com meu “way of flylife”. Mas como percebi que o senhor (depois vim saber que ele tinha a mesma idade minha. Será que as pessoas também me veem como um senhor?)  estava meio nervoso, retirei os fones, fechei o computador novamente e tentei falar algumas palavras de conforto: “calma senhor, eu viajo toda semana e o avião nunca caiu”. Logicamente que minha intenção era finalizar aquela conversa ali e voltar à programação normal. Ledo engano. Foi aí que o homem destampou a falar. Descobri que era da cidade de Belo Jardim, estado de Pernambuco. Pertinho de Caruaru. Mas estava morando em Gurupi, Estado do Tocantins. Contou-me que era professor de música lá. Dava aulas para crianças. Contratado como temporário pelo município. Explicou-me a diferença entre funcionário público concursado e contratado por tempo determinado. Falou-me que dava aula de qualquer instrumento mas era bom mesmo nos de sopro. Explicou-me sobre teoria musical e a dificuldade de se tocar bateria. Falou que saiu da cidade natal por conta de um amigo major do exército que o tinha convidado para ser professor de música. Disse ainda que o dito major tinha capotado o carro na estrada quando tinha ido busca-lo para a mudança. Capotou o carro com a esposa e o filho de dois meses dentro. Ninguém havia se ferido. Ele mesmo queria ser militar. O cidadão. Mas tinha sido dispensado na junta militar da cidade natal. Antes tivesse se alistado na capital. Falou que a aposentadoria de militar era boa. Que eu devia colocar meus filhos na escola militar para estudar música. Lembrou-me mais uma vez que era a primeira vez que voava de avião. A esposa dele também nunca tinha voado e pediu que ele ligasse quando chegasse ao destino. Estava preocupada. E tinha um filho de cinco anos. E reclamou quando peguei uma balinha do serviço de bordo alegando que levaria para meus filhos: “se eu soubesse tinha pegado uns cinco pacotes para meu filho. Será que precisa guardar na geladeira?”. Perguntou a aeromoça. Ela explicou com toda paciência que não. Relatou logo após que tinha saído de Gurupi de ônibus até Palmas. Passagens todas compras com dinheiro emprestado do amigo major. Pagaria em suaves prestações. De lá avião até Goiânia. De Goiânia um voo até Belo Horizonte. De BH outro voo até Recife. Um amigo do irmão o pegaria de carro e levaria até Caruaru. De lá o irmão o levaria a Belo Jardim. Fiquei com pena: “mas para que essa saga?”. Baixou o tom da voz e disse que tinha falado para a mãe ao telefone: “mãe, não deixa papai ir. Segura ele”. Estava indo para o enterro do pai. A pena triplicou. Perguntou o que eu fazia. Engoli seco e respondi sem graça que trabalhava com cemitérios. Ele espantou-se. Contou dos irmãos. Vários. Um já tinha morrido. Bebia demais. Era o único musico entre todos. Olhou as nuvens e perguntou que altura estávamos. Mostrei o mapa na tela. Indagou porque voar acima das nuvens. Tentei explicar. Disse que as nuvens pareciam feitas de algodão. De repente calou-se e dormiu. Por hora esqueceu a agonia de voar pela primeira vez tentando chegar ao enterro do pai a tempo. Pensei logo em retomar minha jornada habitual, mas as nuvens me chamavam a contemplação. Brancas e macias como algodão. Havia me esquecido disso. Dessa sensação de fazer algo fora do script. De passar prazo observando as coisas triviais da vida. E assim fiquei até ele acordar no pouso. De novo a preocupação do que fazer em seguida. Tentei tranquiliza-lo. Iria ajudar. Descemos e logo busquei informações do voo dele que seguiria até Recife. Ainda tinha duas horas de espera no aeroporto. Eu permaneceria em Belo Horizonte. Perguntou se no outro voo serviria almoço. Tive que lhe dar a má notícia que no máximo balinhas de gelatina e goiabinha integral. Ele estendeu a mão. Agradeceu. Desejei-lhe boa viagem. Parti. Ele ficou. Em mim uma sensação de querer ficar mais lá e escuta-lo. Deixar o computador e os fones dentro na mochila, tomar um café demorado e saber mais da sua vida. Mas faltou a resolução. Virei as costas e segui meu rumo. Mas não sem antes olhar pela janela da sala de embarque e pensar que há tempos não observava as nuvens. Como eram parecidas com algodão. Brancas e macias.

               

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, terça-feira 26 de fevereiro de 2019

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

sobre cores e opções


Sobre cores e opções

 

 

Hoje fui acometido de uma dúvida atroz. Comentar ou me abster sobre a polêmica declaração da nossa nova Ministra de Direitos Humanos e afins. Sabe aquela do “menino veste azul e menina veste rosa”? Se não está ciente melhor pesquisar no youtube porque foi trend topics. A cena é no mínimo hilária. Parece aquelas provocações de criança quando ganha no pique pega e quer curtir com a outra. Tipo: “eu ganhei e você perdeu!! Ná, ná, ná, ná, ná! Você é feio e bobo!! Ná, ná, ná, ná, ná!”. Mas, independente da cena cômica, a minha dúvida em relação a escrever ou não sobre o assunto veio exatamente do que dizer. Ou não dizer. Dizer da infantilidade da declaração? Falar sobre os conceitos totalmente retrógrados? Que tal sobre a tolerância e respeito para com a diversidade? Ou sobre o Estado laico? Talvez pudesse raciocinar no sentido de coerência de discurso, afinal nada está sendo dito o contrario do que foi prometido em campanha. Ou poderia dizer dos inimigos imaginários que o governo se propõe a combater como a diversidade de gênero e o socialismo. Ou poderia tentar explicar sobre definição de socialismo e de como estamos num país capitalista selvagem. Ou mais ainda em como isso se torna uma cortina de fumaça sobre o que realmente interessa para a população brasileira. Poderia dizer que não esperava algo diferente? Ou seria pragmático demais? Será que poderia dizer que tenho camisas rosas no meu armário e sou hetero? Ou isso causaria mais desinteligência? Ou isso não tem nada de relevante? Poderia levantar a fala de que o discurso de união confronta veementemente com esse tipo de atitude revanchista? Afinal foi uma atitude revanchista ou infantil? Ou as duas? Ou néscia? Ou inteligente? Podemos voltar à cortina de fumaça? Ela encobre o que? O medo do governo de não “estar com essa bola toda” quando tentar aprovar as reformas? De dar amplitude aos latidos dos cães enquanto a caravana passa? Ou simplesmente porque estamos passando por uma fase “tentativa, erro e acerto”? Poderia dizer que a isca foi lançada e nós mordemos? Que cada enxadada será uma minhoca? Ou que teremos tempos bicudos pela frente? Poderia dizer tanta coisa ao mesmo tempo para uma simples declaração? Ou não dizer nada pela declaração irrelevante?

Ao final de toda essa algazarra de perguntas e não respostas, resolvi perguntar a minha filha de treze anos o que ela tinha achado da declaração. Talvez viesse daí uma luz. Sabe o que ela respondeu?

- Para uma Ministra de Direitos Humanos ela está errada. Todos temos o direito de usar azul ou rosa. Eu uso o que eu quiser. Até roupa transparente se quiser.

É isso. Na simplicidade a melhor resposta. Voto com a relatora.

 

 

ps. Papai não deixa sair de roupa transparente não. Foi só uma metáfora dela. Espero.

        

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, 04/01/2019