Entre tantas histórias
Entre as tantas histórias do saudoso governador Iris Rezende, estive como
protagonista em uma delas. Um duelo do velho animal político e do jovem
aprendiz de empresário. Mandou-me chamar para uma reunião no paço municipal
para tratarmos da revolta popular em relação a instalação de um cemitério na
região oeste de Goiânia. Na época eu dirigia uma empresa privada que detinha
uma concessão da Prefeitura para a construção de um novo cemitério particular
na capital. A contrapartida desse empreendimento particular seria a construção
e doação de um cemitério público, à prefeitura, para sepultamento de munícipes
carentes. Assim foi feito, e o cemitério municipal foi construído em área de
fundo do terreno com frente voltada para alguns bairros da periferia de
Goiânia. Quando a população descobriu que a obra que se erguia seria de um
cemitério, logo se revoltou o que culminou em algumas cenas de barbárie com vandalização
das instalações da obra do cemitério público. Por esse motivo eu tinha sido
convocado à presença do Prefeito para maiores esclarecimentos. Tinha pouco mais
de 30 anos e confesso que tremia dentro do terno que coloquei para a ocasião.
Iria estar frente a frente com um dos maiores políticos goianos depois de
Leopoldo de Bulhões. Era de assustar qualquer crente. Não me recordo se foi
servido água ou café porque meus pensamentos estavam voltados para minhas
pernas que balançavam como duas varetas procurando água no subsolo. Ele entrou
na sala onde fui posto a aguardar ladeado de seis outras pessoas (poderiam ter sido
cinco ou sete pessoas, pois a precisão não era o meu aliado naquele momento).
Sentou-se perto de mim no canto de uma mesa grande. Os demais permaneceram de
pé à nossa volta. Parecia uma rinha de galo onde os desafiantes ficaram ao
centro diante de uma plateia apostadora. Colocou a mão sobre a minha mão como
um gesto de aproximação e começou a contar histórias relacionadas a cemitérios.
Penso que a grande maioria das pessoas têm histórias relacionadas à morte para
contar e quando encontram palco apropriado tendem a contá-las. Passei por isso diversas
vezes desde quando comecei meu ofício de coveiro e com o ex-governador não
haveria de ser diferente. Depois do preâmbulo, finalmente, entrou no assunto
que me trazia até ele. Resolver a revolta popular diante da construção do
cemitério público. Depois de muito bailado pela sala (no sentido figurado), desenhamos
uma solução. O empreendimento entraria com um pedido de parcelamento de uma
faixa do cemitério que ficava lindeira à vizinhança. Como se fosse uma faixa de
lotes que protegeria os cidadãos. Assim a população ficaria de frente a lotes
comerciais e os lotes comerciais ficariam de fundo com o cemitério.
Concordamos. Parte dos lotes estariam dentro da área do cemitério particular e
parte dentro do cemitério recém doado a Prefeitura. Cada um cuida dos seus.
Vamos embora? Não! Novamente as mãos repousadas sobre a minha, disse que os lotes
comerciais que estavam dentro do cemitério público não eram de interesse da
prefeitura. Vereador toma tudo da gente, disse ele. O que nos interessa mesmo é
mais área de cemitério municipal. Precisamos enterrar os mais necessitados,
tornou a dizer. Tudo bem, prefeito. Troco área de lotes comerciais por mais
área de cemitério. Resolvido? Mas a questão é que área comercial vale mais que
área de cemitério, argumentou ele. E nisso começou uma negociação entre equivalência
de áreas com uma disputa centímetro a centímetro. E a plateia formada vibrava
em silêncio a cada movimento de barganha até que fechamos o “negócio”. Já ia me
levantando com ar de vitorioso que sai de uma batalha produtiva, quando ele me
fez um último apelo. Quase com água nos olhos. Sabe Dr. Guilherme (pensa um
jovem ser chamado de doutor por um ex-ministro da justiça), desses lotes que
acabamos de permutar, você poderia doar uns três para a prefeitura. Mas
prefeito, o senhor acabou de trocá-los comigo e além do mais disse que lotes
comerciais não eram de interesse da prefeitura! Mas é que nesses lotes posso construir
uma creche, um CAIS ou uma escola. Benefício para a população carente daquela
região tão desassistida. Ah e seria bom que fossem contíguos os lotes e na
beirada da área. Pode ser? Naquele momento, exausto que estava, joguei a
toalha. Está bem Prefeito! Vamos proceder dessa forma. A claque que apreciava o
experiente domador de leões domar aquele gatinho inofensivo abriu sorriso de
orelha a orelha. Restou-me então levantar, cumprimenta-lo pelo espírito de
abnegação pública e sair. Carregado de todo aprendizado possível. Com certeza
para um homem público com o quilate de Iris Rezende, aquela batalha havia sido
pequena e corriqueira, mas para um jovem com a funda na mão, aquela tinha sido a
batalha de uma vida.
* homenagem pelo
falecimento de Iris Resende Machado
Guilherme
A. Santana
e-mail: adv.jbar@gmail.com26 de novembro de 2021 às 11:34
Tudo bem Guilherme? Gosto de suas crônicas. São dotadas de naturalidade literária. Na verdade, você contraria a lógica que engenheiro é pouco dado à essas investidas.
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