sexta-feira, 22 de maio de 2015

Você tem fome de lado B?


Você tem fome de lado B?

 

 

            Mario Vendeiro era conhecido comerciante de Santa Maria, cidade satélite de Brasília, temido pela balança duvidosa que tinha em cima do balcão de sua venda. Funcionava como um cassino. Se ele fosse com a cara do cliente a balança respeitava mais ou menos o peso original. Agora se não fosse com a cara do cliente... ai pesava na medida. Mas não era para menos. Tinha chegado da sua longínqua Paraíba quando da inauguração da capital federal em 60 com uma mão na frente e nenhuma atrás, pois era maneta. Tinha cometido um erro na serraria onde trabalhava, pretendendo cortar só um dedo para solicitar aposentadoria por invalidez, mas a imperícia lhe custou a mão toda. Menos mal, pois conseguiu seu intento de aposentadoria. Porém ficou mal visto entre os empregadores da cidade e teve que sair corrido para a capital federal onde recomeçaria a vida como um desconhecido paraíba. Aplicando pequenos golpes aqui e ali conseguiu dinheiro para montar a Venda Madre Tereza no povoado de Santa Maria. O nome foi sugerido pela esposa como uma tentativa de mascarar a má fama que o marido tinha no trato comercial com os clientes. Vai que a Santa abençoa e ninguém descobre os lampejos de furto do Mário né? Ou ainda melhor! Vai que a Santa abençoa e o marido fica rico?! Por isso Seu Mario Vendeiro jogava no jogo do bicho toda semana. Para tentar ajudar o trabalho da Santa. Mas não havia ainda sido aquinhoado com o prêmio grande. Somente algumas quirelas. Que sorte é essa? Ruminava ele a um cliente que entrava na pequena venda. Foi nesse momento que percebeu um movimento suspeito na porta do estabelecimento. Um cidadão mal feito estava tentando surripiar uma manta de carne de sol que pairava sobre a pequena estufa de tela verde que ficava na calçada. Produto “artesanal” que Seu Mario comprava sem nota fiscal e sem procedência de um cidadão que furtava gado na divisa com Goiás. Botou a única mão que tinha no ombro do cliente que se encontrava do outro lado do balcão e num salto longo, coisa quase não permitida pela idade e limitação física, saltou por sobre o balcão e correu em busca da captura do meliante. Quase numa cena cinematográfica se embolaram no meio da calçada como novelo de lã o que resultou no rendimento do ladrão. Instaurada a confusão. Ajuntamento de gente foi pouco. Naquela hora da manhã quase não havia passantes pelo local, e os poucos que se encontravam não queriam saber de confusão. Chamada a polícia e entregue o usurpador de carne, limpou o avental e voltou ao trabalho. Sempre tivera horror de ser roubado. Fazia uma força danada para esconder seus pequenos delitos, e agora neguinho vinha querer tirar uma com a cara dele? Aqui não ladrãozinho! Pediu desculpas ao cliente que ainda se encontrava petrificado a beira do balcão, mas não sem antes esbravejar o bordão que o acompanhava: que sorte é essa?

           

Mario Eletricista foi colocado no porta malas da viatura policial como um pedaço de carne. Mal conseguia erguer a cabeça de tanta raiva. Era eletricista de formação, mas devido à crise econômica e a preguiça de correr atrás de emprego, andava vivendo ultimamente de pequenos bicos e ocasionalmente de pequenos furtos. A raiva era pelo fato das pessoas o estarem olhando como se fosse um bandido da pior espécie. Naquele momento lembrou-se do filho de 12 anos que o esperava em casa com alguma coisa para forrar o estômago. Tinha dois dias que não comiam praticamente nada. Na verdade ele tinha saído cedo para fazer um bico na casa do Alaor padeiro. Consertar uma tomada que estava dando curto. Mas quando passou pela venda e viu a carne dando sopa, resolveu facilitar as coisas. Ademais o Seu Alaor era um chato. Contratava um serviço e exigia tudo limpo ao final. Onde já se viu isso? Eu sou eletricista e não faxineira! Dizia ele sempre. Além disso, tinha a mulher do padeiro que era feia tal igual o cão e ficava se insinuando para ele toda vez que ia fazer um conserto. Perguntava sempre se sua chave de fenda era grande. Ele até gostava das brincadeiras de duplo sentido, mas encarar a broa mal assada do padeiro estava fora de cogitação. Por isso, quando viu a carne na venda, resolveu encurtar caminho. Certamente não fará falta ao vendeiro e fará uma tremenda diferença na minha mesa. Pensou. Olhando para os lados para ver se não ninguém observava e aproveitando que um cliente estava ao balcão atrapalhando a visão do proprietário da venda, abriu a porta da estufa e lançou mão no pedaço de carne. Foi quando viu o homem que estava detrás do balcão, num salto plástico, alcançar e derrubar ao chão. Carne humana e de sol. Depois disso se lembrava de muito pouco. A raiva bloqueou seus pensamentos. Como se deixou dominar por um senhor com o dobro da sua idade e ainda por cima maneta?! Amaldiçoou internamente o vendeiro. E o pior é que o pagamento do Bolsa Família tinha saído no dia anterior e ele estava reservando parte do dinheiro para comprar mantimentos para casa, mas acabou gastando na banca do bicho. Fazer uma fezinha para ver se multiplicava o dinheiro e resolvia de vez sua situação de penúria. Jogou no macaco. Deu burro. Só conseguiu proferir mais uma vez a frase antes que o porta malas se fechasse em um som surdo sobre sua cabeça: que sorte é essa?

           

Mario Policial era agente. Tinha passado no último concurso da policia na cota racial. Não pestanejou nem uma vez na hora de marcar na ficha de inscrição. Negro/Pardo. Apesar de sua tez branca, quase amarelada. Tinha até descendente japonês. Dizia sempre que se tinham cotas para negros, porque não haveria para amarelos? Que sorte é essa? Pois estava de plantão na delegacia no momento que a viatura estacionou no pátio. Mais um meliante que não teremos onde colocar. Pensou. Fingiu uma dificuldade para andar para chegar por último à viatura e trabalhar menos. Mal conseguia enxergar o rosto do sujeito. Não levantava a cabeça. Olha pra mim rapaz! Esta com vergonha do mal feito? Agora não adianta mais! Botou banca para mostrar quem mandava no pedaço. Sempre agia assim para estabelecer limite aos meliantes. Era uma maneira de tentar suprir a total falta de preparação para exercer o cargo. Aliás, preparado mesmo para a função ali na delegacia não tinha quase ninguém. Com exceção da Dona Maricota, a cozinheira, que era super preparada e fazia um feijão de comer ajoelhado. Vivia botando culpa de tudo no Estado. É a falta de preparo dos agentes, é o sucateamento das viaturas, é a ineficiência das armas... sem contar a estrutura física que estava caindo aos pedaços. Costumava dizer que aquela cidade era esquecida do mundo. Que sorte é essa? Dizia sempre aos colegas. Foi nesse rompante que começou o interrogatório do meliante. Começou em termos porque o cidadão não parava de chorar. Trás um copo de água com açúcar pro homem Dona Maricota! Pra ver se ele acalma. Acalmou. Contou. Desfiou o rosário de suas mazelas. Destramelou, como se diz no interior, a falar. Exagerou que só ele. Falou do filho que passava fome, da mulher que estava doente, do Bolsa Família que tinha atrasado, da falta de emprego. Só parou quando percebeu que tinha atingido seu objetivo. Consternação geral. Foi quando Mario Policial teve uma ideia casual. Vamos fazer uma vaquinha e pagar a fiança do pobre coitado. Comoção geral. Todos queriam colaborar. Propôs ser o caixa e contribuir com sua parte. Pois a derrama se realizou e Mario Policial, como de costume, se eximiu do seu quinhão de colaboração. Juntou o dinheiro dos colegas e pagou a fiança. Propôs ainda que fizessem um extra de arrecadação e comprasse mantimento para o eletricista. Mais uma vez sua ideia foi louvada e acatada. Assim foi feito e mais uma vez ficou incumbido da compra e entrega dos mantimentos. Utilizando-se dessa desculpa pediu dispensa do restante do dia para cumprir a missão filantrópica. Seu pedido foi deferido e o policial saiu com o dinheiro no bolso. Passando pela banca do jogo do bicho resolveu parar e tentar a sorte. Apostou o seu dinheiro e o da vaquinha. Jogou na vaca. Deu burro. Perdeu. Desolado com a má sorte saiu a caminhar pela rua e resolveu parar na venda para tomar umas e esquecer os desalentos “jogatícios”. Nem percebeu que entrara no estabelecimento de Seu Mario Vendeiro. Tinha conta pendurada lá. Tinha até guardado o dinheiro para quitar a dívida, mas havia perdido na vaca. Mentiu ao comerciante sua disposição em pagar a conta, mas que havia feito uma boa ação com o dinheiro naquele dia e que pagaria o que devia no recebimento do próximo salário. Seu Mario Vendeiro, escondendo a decepção e a desconfiança da veracidade da conversa engoliu a justificativa e perguntou o que o levara a gesto tão nobre. O policial contou que na hora pensou em seu próprio filho e em suas atitudes caso o menino estivesse passando fome. Seu Mario encheu os olhos de fúria sem identificar que o cidadão era o mesmo que havia tentado furtá-lo mais cedo. E não há de ver Seu Mario que o rapaz ainda vai responder processo por furto?!?! Que sorte é essa? Emendou o policial pensando na sua má sorte no jogo. Seu Mario foi obrigado a concordar pensando na conta do policial que continuaria pendurada. É o que sempre digo: que sorte é essa?            

   

* essa é uma estória de ficção

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 22 de maio de 2015


 

 

Policiais civis de Brasília que se sensibilizaram com a história do homem que furtou para alimentar o filho descobriram nesta sexta-feira (15) que o eletricista Mário Ferreira Lima já tinha três antecedentes criminais por furto em comércio no estado de Goiás, todas de carne. Lima nega que tenha cometido os crimes, disse que realmente passa por necessidades e declarou que não quer comentar o assunto.

(G1 16/05/2015)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Você tem fome de que?



Você tem fome de que?



Mario Vendeiro era conhecido comerciante de Santa Maria, cidade satélite de Brasília, respeitado por sua rigidez com os bons costumes e pelo coração mole com as mazelas do povo sofrido. Mas não era para menos. Tinha chegado da sua longínqua Paraíba quando da inauguração da capital federal em 60 com uma mão na frente e nenhuma atrás, pois era maneta. Comeu o pão que o diabo amassou para arrumar ofício, pois sabia no máximo cuidar da criação de fazenda. O trabalho na edificação do sonho de JK tinha a contribuição do seu suor, sangue e juventude. E foi com trabalho pesado que ele juntou um dinheirinho e montou a Venda Madre Tereza no povoado de Santa Maria. O nome foi sugerido pela esposa em referência a Madre que dedicou sua vida aos pobres e necessitados, como uma critica ao marido pela benevolência e o coração mole que ela entendia excessivos. Se não fosse essa moleza do Mario, já seríamos ricos. Contava a esposa a todos que passavam na rua a lhe dar bom dia. Mas Seu Mario era assim. E assim ia tocando a sua vida de correção e solidariedade. Para que ficar rico? Dizia ele. De que vale aquele povo com tanto dinheiro e egoísta para com o próximo? Que justiça é essa? Ruminava ele a um cliente que entrava na pequena venda. Foi nesse momento que percebeu um movimento suspeito na porta do estabelecimento. Um cidadão mal feito estava tentando surripiar uma manta de carne de sol que pairava sobre a pequena estufa de tela verde que ficava na calçada. Produto artesanal que Seu Mario produzia no quintal de casa, aprendido com a mãe que era sertaneja. Botou a única mão que tinha no ombro do cliente que se encontrava do outro lado do balcão e num salto longo, coisa quase não permitida pela idade e limitação física, saltou por sobre o balcão e correu em busca da captura do meliante. Quase numa cena cinematográfica se embolaram no meio da calçada como novelo de lã o que resultou no rendimento do ladrão. Instaurada a confusão. Ajuntamento de gente foi pouco. Naquela hora da manhã quase não havia passantes pelo local, e os poucos que se encontravam não queriam saber de confusão. Chamada a polícia e entregue o usurpador de carne, limpou o avental e voltou ao trabalho. Sempre fora muito solidário com as misérias humanas, mas não admitia o delito. Sua vida sempre fora exemplo de retidão. Pediu desculpas ao cliente que ainda se encontrava petrificado a beira do balcão, mas não sem antes esbravejar o bordão que o acompanhava: que justiça é essa?
Mario Eletricista foi colocado no porta malas da viatura policial como um pedaço de carne. Mal conseguia erguer a cabeça de tanta vergonha. Era eletricista de formação e
nunca havia se imaginado naquela situação. As pessoas o olhando como se fosse um bandido da pior espécie. Naquele momento lembrou-se do filho de 12 anos que o esperava em casa com alguma coisa para forrar o estômago. Tinha dois dias que não comiam praticamente nada. Na verdade ele tinha saído cedo para fazer um bico na casa do Alaor padeiro. Consertar uma tomada que estava dando curto. Mas dera com a cara na porta. O padeiro anoiteceu e não amanheceu. Um vizinho contou ao eletricista que foi coisa de traição da esposa e que Seu Alaor não aguentou o falatório do povo. Evadiu-se com a família. Mas Mario Eletricista não queria saber da vida particular de ninguém. Sua preocupação era levar comida para casa. Como o bico não deu em nada o jeito era procurar outra solução. Foi quando passou em frente à Venda Madre Tereza e viu uma manta de carne pendurada na estufa. Olhou para dentro do estabelecimento e viu o dono encoberto por um cliente. Num segundo de bobeira o mal tomou sua cabeça. Abriu a porta da estufa e lançou mão no pedaço de carne. Foi quando viu o homem que estava detrás do balcão, num salto plástico, alcançar e derrubar ao chão. Carne humana e de sol. Depois disso se lembrava de muito pouco. A vergonha bloqueou seus pensamentos. Nunca tinha se apossado de nada que não fosse seu. Nem mesmo nos meses em que a esposa passara doente e a família passara por momentos de privação extrema. Tinha seu ofício e dele se orgulhava. Quando a esposa melhorou culminou a crise econômica. Não tinha emprego. Preferiu que a mulher fosse morar com um filho de outro casamento. Não tinha condição de sustenta-la em recuperação. Mas ficou com a incumbência de cuidar do filho adolescente. E assim, às duras penas, ia fazendo. Teve inclusive que se inscrever no plano de ajuda do governo. Bolsa Família. Odiava e se envergonhava disso. Como um trabalhador como eu pode se sujeitar as esmolas do governo? Que justiça é essa? Dizia ele. Agora com a lembrança do filho que estava sozinho em casa a espera de comida, ele era jogado dentro da viatura. Só conseguiu proferir mais uma vez a frase antes que o porta malas se fechasse em um som surdo sobre sua cabeça: que justiça é essa?
Mario Policial era agente. Estava de plantão na delegacia no momento que a viatura estacionou no pátio. Mais um meliante que não teremos onde colocar. Pensou. Com dificuldade para andar por conta de um ataque de gota, foi até o local e ajudou a retirar o homem de dentro do porta malas. Mal conseguia enxergar o rosto do sujeito. Não levantava a cabeça. Olha pra mim rapaz! Esta com vergonha do mal feito? Agora não adianta mais! Botou banca para mostrar quem mandava no pedaço. Sempre agia assim para estabelecer limite aos meliantes. Era uma maneira de tentar suprir a total falta de preparação na academia de polícia. Aliás, preparado mesmo para a função ali na delegacia não tinha quase ninguém. Com exceção da Dona Maricota, a cozinheira, que
era super preparada e fazia um feijão de comer ajoelhado. Fora a falta de preparo dos agentes tinha também o sucateamento das viaturas e a ineficiência das armas. Sem contar a estrutura física que estava caindo aos pedaços. Costumava dizer que aquela cidade era esquecida do mundo. Que justiça é essa? Dizia sempre aos colegas. Foi nesse rompante que começou o interrogatório do meliante. Começou em termos porque o cidadão não parava de chorar. Trás um copo de água com açúcar pro homem Dona Maricota! Pra ver se ele acalma. Acalmou. Contou. Desfiou o rosário de suas mazelas. Destramelou, como se diz no interior, a falar. Só parou quando percebeu que ninguém mais falava. Só havia cara de consternação. E o pior. Ficaria preso pois não tinha dinheiro nem para comida, quanto mais para a fiança. Mario Policial já era calejado desse tipo de situação, mas nunca havia escutado uma história tão sincera e emotiva. Fez o impensado. Tirou dinheiro do bolso e pagou a fiança do preso. Os colegas policiais, também em estado de solidariedade, prometeram fazer uma vaquinha e comprar alimentos para Mario Ferreira e o filho. Levariam mais tarde em sua casa. Despediram-se com um aperto de mão afetuoso e o ex-preso seguiu o rumo de casa. Na saída o policial olhou o homem se afastando e pensou que o eletricista ainda responderia processo por furto, mas tinha certeza que nesse momento isso não passava por sua cabeça. Tinha certeza que o homem só tinha desejo de abraçar seu filho em casa. Foi nesse interim que Mario Policial resolveu que não trabalharia mais naquele dia. Pediu dispensa do serviço. Queria também ir para casa abraçar seu filho. Liberado pelo Delegado saiu a caminhar pela rua e resolveu parar na venda para levar uns mimos para casa. Nem percebeu que entrara no estabelecimento de Seu Mario Vendeiro. Tinha conta pendurada lá. Tinha até guardado o dinheiro para quitar a dívida, mas havia disposto de todo o numerário para pagar a fiança do eletricista. Contou ao comerciante sua disposição em pagar a conta, mas que havia feito uma boa ação com o dinheiro naquele dia e que pagaria o que devia no recebimento do próximo salário. Seu Mario Vendeiro, coração mole, assentiu da justificativa e perguntou o que o levara a gesto tão nobre. O policial contou que na hora pensou em seu próprio filho e em suas atitudes caso o menino estivesse passando fome. Seu Mario encheu os olhos de lágrimas sem identificar que o cidadão era o mesmo que havia tentado furtá-lo mais cedo. E não há de ver Seu Mario que o rapaz ainda vai responder processo por furto?!?! Que justiça é essa? Desabafou o policial. Seu Mario emendou concordando. É o que sempre digo: que justiça é essa?
* essa é uma estória de ficção


Guilherme Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 15 de maio de 2015
santanagui@hotmail.com

"Após tentar furtar 2kg de carne em um mercado de Santa Maria, o desempregado Mário Ferreira Lima foi preso em flagrante. Mas a polícia se comoveu com a história do rapaz: depois que ele contou a história de vida dele, policiais pagaram a fiança e ainda fizeram compras para a família. Entregaram os mantimentos nesta terça-feira (13/5), na casa do suspeito, no Jardim Ingá, cidade do Entorno do DF."
(Correio Brasiliense 14/05/2015)


sexta-feira, 8 de maio de 2015

Du Queiroz Du Anzóis


Du Queiroz Du Anzóis

 

            Eduardo Queiroz, Du Queiroz para os íntimos, era contabilista. Orgulho só da formação. O pai queria que ele tivesse feito Direito. A mãe que ele continuasse tocando oboé. Resolveu diferenciar. Contabilidade foi o que resultou. Já saiu da faculdade empregado. Uma grande empresa de construção, entre as cinco maiores do país, tinha o privilégio de tê-lo em seus quadros. Pelo menos era assim que pensava. Autoestima era seu forte. Digamos que se gabava um pouco em excesso disso. Aliás, se gabava de um bocado de coisa. De como não tinha ficado nenhum dia desempregado. De como trabalhava em uma grande empresa. De como tinha todos os benefícios trabalhistas previsto em lei. De como tinha bônus por produtividade no fim do ano. De como tinha um bom relacionamento com seus colegas de trabalho. De como tinha uma noiva paciente que namorava há 12 anos. Mas principalmente de como era exímio pescador. Ah nisso ele subia no banquinho e entoava estórias fascinantemente suspeitas de suas peripécias piscosas como se interpretasse uma ópera. Tenor. O pessoal do lava jato da esquina do seu trabalho era o público preferencial. Chegava a ficar horas a fio desfiando o rosário de tambaquis, pacus, caranhas e piranhas (de salto inclusive) que faziam parte do seu currículo. E em seu redor se formava uma roda dos funcionários a escutar as prosopopeias contadas com tanta riqueza de detalhes. O dono do lava jato, Seu Vacaro, por vezes ficava irritado e tentava fazer a dispersão, mas o fazia de forma sutil, pois não queria perder o freguês. Era conhecido no estabelecimento como Du Anzóis, um apelido bem humorado colocado pelo gerente do lava jato que era o chefe da resenha. E Eduardo se gabava disso também. De ter um apelido tão ligado a sua pessoa. Gabava-se também do veículo que tinha comprado com os tais bônus de fim de ano. Era completo. Air bag, ABS, ar condicionado e tudo. Tinha postergado seu casamento com Rita por conta da aquisição do carro. E das pescarias que fazia com os amigos todo ano. Sabe como é né? Não sobra dinheiro para o casório. Mas a noiva era paciente e mantinha o Santo Antônio em cima da geladeira para tentar antecipar o evento. Se bem que por vezes ela achava que pinguim é que ficava em cima da geladeira e talvez o santo não estivesse gostando do local de sua estada e tivesse dando uma gelada na noiva. Mas por via das dúvidas ficava por ali mesmo até que subisse ao altar. Uma das coisas que Du mais se gabava, fora a pescaria, era de ser um funcionário exemplar. Não me meto onde não sou chamado, dizia sempre na pausa para o café. Fazia o seu trabalho e pronto. Não questionava nada. O chefe mandava assinar os documentos e ele obedecia de pronto. Nem se preocupava em ler, afinal esses documentos de contabilidade são muito chatos e repetitivos. Foi assim com esse tom de galhardia que entrou na sala do diretor da empresa, logo na primeira hora da manhã, após ser convocado para uma conversa. Provavelmente receberia um elogio, ou até quem sabe um aumento. Autoestima pura. Pois não foi assim que saiu do escritório do chefe com dois papeis assinados. O aviso prévio e uma convocação do oficial de justiça para prestar esclarecimentos sobre uma tal operação policial. A empresa em que trabalhava estava sendo investigada pela Polícia Federal por corrupção. Lavagem de dinheiro. Logo aquela empresa que lhe garantia todos os benefícios trabalhistas. Os de lei e os de mérito. Ele custou a acreditar. O que diria para Rita? O que diria aos amigos? Como pagaria as dez prestações restantes da pescaria do ano anterior que foi dividida no cartão de crédito? Desceu as escadas do prédio macambúzio remoendo seus pensamentos e nem percebeu a entrada de agentes da PF no escritório. Apreenderam tudo. Até a máquina de café. Até o porta retrato com a foto da Rita e do Pirarucu de cinquenta quilos que estava sobre a sua mesa. Até a sua dignidade. Entrou no lava jato cabisbaixo. Sem chamar a galera para a resenha habitual. Todos estranharam. Esperavam pelo momento das estórias. O dono do lava jato se preocupou. Inquiriu. Ele contou. Seu Vacaro se assustou. Mas essa empresa? Pois é. Mas você? Pois é. Compadecido com a situação do contabilista o dono do lava jato disse que se quisesse tinha emprego para ele ali no estabelecimento. Não na gerência como a capacidade e formação de Eduardo. Nem com os direitos trabalhistas todos, porque assinava só metade da carteira trabalhista e o resto era pago por fora. Nem com os bônus de final de ano. Mas tinha. E era o que podia oferecer. Com um sorriso amarelo na boca Du Queiroz agradeceu e disse que aceitava. Precisava. Começaria no outro dia. Primeiro daria a notícia a noiva e tentaria colocar os pensamentos em ordem. Logo ao raiar o sol já havia se apresentado no novo emprego. Lavador de carro. Logo no café e pão com margarina dos funcionários do lava jato já começou a se formar a roda para escutar as estórias. Mas dessa vez Seu Vacaro dispersou a turba e mandou todos voltarem ao trabalho. Aqui é lava jato, mas não é atrapalhado igual vocês estão achando não! E volte ao trabalho Seu Du Anzóis que meu dinheiro não é capim! E assim todos voltaram as atividades como de costume. E assim começava o primeiro dia de Eduardo no seu novo trabalho. Sorriso na cara e autoestima estampada nos dentes. Afinal ele era brasileiro, e brasileiro não desiste nunca.   

      

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 08 de maio de 2015