Você
tem fome de lado B?
Mario
Vendeiro era conhecido comerciante de Santa Maria, cidade satélite de Brasília,
temido pela balança duvidosa que tinha em cima do balcão de sua venda.
Funcionava como um cassino. Se ele fosse com a cara do cliente a balança
respeitava mais ou menos o peso original. Agora se não fosse com a cara do
cliente... ai pesava na medida. Mas não era para menos. Tinha chegado da sua
longínqua Paraíba quando da inauguração da capital federal em 60 com uma mão na
frente e nenhuma atrás, pois era maneta. Tinha cometido um erro na serraria
onde trabalhava, pretendendo cortar só um dedo para solicitar aposentadoria por
invalidez, mas a imperícia lhe custou a mão toda. Menos mal, pois conseguiu seu
intento de aposentadoria. Porém ficou mal visto entre os empregadores da cidade
e teve que sair corrido para a capital federal onde recomeçaria a vida como um
desconhecido paraíba. Aplicando pequenos golpes aqui e ali conseguiu dinheiro
para montar a Venda Madre Tereza no povoado de Santa Maria. O nome foi sugerido
pela esposa como uma tentativa de mascarar a má fama que o marido tinha no
trato comercial com os clientes. Vai que a Santa abençoa e ninguém descobre os
lampejos de furto do Mário né? Ou ainda melhor! Vai que a Santa abençoa e o marido
fica rico?! Por isso Seu Mario Vendeiro jogava no jogo do bicho toda semana.
Para tentar ajudar o trabalho da Santa. Mas não havia ainda sido aquinhoado com
o prêmio grande. Somente algumas quirelas. Que sorte é essa? Ruminava ele a um cliente
que entrava na pequena venda. Foi nesse momento que percebeu um movimento
suspeito na porta do estabelecimento. Um cidadão mal feito estava tentando
surripiar uma manta de carne de sol que pairava sobre a pequena estufa de tela
verde que ficava na calçada. Produto “artesanal” que Seu Mario comprava sem
nota fiscal e sem procedência de um cidadão que furtava gado na divisa com Goiás.
Botou a única mão que tinha no ombro do cliente que se encontrava do outro lado
do balcão e num salto longo, coisa quase não permitida pela idade e limitação
física, saltou por sobre o balcão e correu em busca da captura do meliante.
Quase numa cena cinematográfica se embolaram no meio da calçada como novelo de
lã o que resultou no rendimento do ladrão. Instaurada a confusão. Ajuntamento
de gente foi pouco. Naquela hora da manhã quase não havia passantes pelo local,
e os poucos que se encontravam não queriam saber de confusão. Chamada a polícia
e entregue o usurpador de carne, limpou o avental e voltou ao trabalho. Sempre tivera
horror de ser roubado. Fazia uma força danada para esconder seus pequenos delitos,
e agora neguinho vinha querer tirar uma com a cara dele? Aqui não ladrãozinho!
Pediu desculpas ao cliente que ainda se encontrava petrificado a beira do
balcão, mas não sem antes esbravejar o bordão que o acompanhava: que sorte é
essa?
Mario Eletricista foi
colocado no porta malas da viatura policial como um pedaço de carne. Mal
conseguia erguer a cabeça de tanta raiva. Era eletricista de formação, mas
devido à crise econômica e a preguiça de correr atrás de emprego, andava
vivendo ultimamente de pequenos bicos e ocasionalmente de pequenos furtos. A
raiva era pelo fato das pessoas o estarem olhando como se fosse um bandido da
pior espécie. Naquele momento lembrou-se do filho de 12 anos que o esperava em
casa com alguma coisa para forrar o estômago. Tinha dois dias que não comiam
praticamente nada. Na verdade ele tinha saído cedo para fazer um bico na casa
do Alaor padeiro. Consertar uma tomada que estava dando curto. Mas quando
passou pela venda e viu a carne dando sopa, resolveu facilitar as coisas.
Ademais o Seu Alaor era um chato. Contratava um serviço e exigia tudo limpo ao
final. Onde já se viu isso? Eu sou eletricista e não faxineira! Dizia ele
sempre. Além disso, tinha a mulher do padeiro que era feia tal igual o cão e
ficava se insinuando para ele toda vez que ia fazer um conserto. Perguntava
sempre se sua chave de fenda era grande. Ele até gostava das brincadeiras de
duplo sentido, mas encarar a broa mal assada do padeiro estava fora de
cogitação. Por isso, quando viu a carne na venda, resolveu encurtar caminho.
Certamente não fará falta ao vendeiro e fará uma tremenda diferença na minha
mesa. Pensou. Olhando para os lados para ver se não ninguém observava e
aproveitando que um cliente estava ao balcão atrapalhando a visão do proprietário
da venda, abriu a porta da estufa e lançou mão no pedaço de carne. Foi quando
viu o homem que estava detrás do balcão, num salto plástico, alcançar e
derrubar ao chão. Carne humana e de sol. Depois disso se lembrava de muito
pouco. A raiva bloqueou seus pensamentos. Como se deixou dominar por um senhor
com o dobro da sua idade e ainda por cima maneta?! Amaldiçoou internamente o
vendeiro. E o pior é que o pagamento do Bolsa Família tinha saído no dia
anterior e ele estava reservando parte do dinheiro para comprar mantimentos
para casa, mas acabou gastando na banca do bicho. Fazer uma fezinha para ver se
multiplicava o dinheiro e resolvia de vez sua situação de penúria. Jogou no
macaco. Deu burro. Só conseguiu proferir mais uma vez a frase antes que o porta
malas se fechasse em um som surdo sobre sua cabeça: que sorte é essa?
Mario Policial era agente.
Tinha passado no último concurso da policia na cota racial. Não pestanejou nem
uma vez na hora de marcar na ficha de inscrição. Negro/Pardo. Apesar de sua tez
branca, quase amarelada. Tinha até descendente japonês. Dizia sempre que se
tinham cotas para negros, porque não haveria para amarelos? Que sorte é essa?
Pois estava de plantão na delegacia no momento que a viatura estacionou no
pátio. Mais um meliante que não teremos onde colocar. Pensou. Fingiu uma dificuldade
para andar para chegar por último à viatura e trabalhar menos. Mal conseguia
enxergar o rosto do sujeito. Não levantava a cabeça. Olha pra mim rapaz! Esta
com vergonha do mal feito? Agora não adianta mais! Botou banca para mostrar
quem mandava no pedaço. Sempre agia assim para estabelecer limite aos
meliantes. Era uma maneira de tentar suprir a total falta de preparação para
exercer o cargo. Aliás, preparado mesmo para a função ali na delegacia não
tinha quase ninguém. Com exceção da Dona Maricota, a cozinheira, que era super
preparada e fazia um feijão de comer ajoelhado. Vivia botando culpa de tudo no
Estado. É a falta de preparo dos agentes, é o sucateamento das viaturas, é a ineficiência
das armas... sem contar a estrutura física que estava caindo aos pedaços.
Costumava dizer que aquela cidade era esquecida do mundo. Que sorte é essa?
Dizia sempre aos colegas. Foi nesse rompante que começou o interrogatório do
meliante. Começou em termos porque o cidadão não parava de chorar. Trás um copo
de água com açúcar pro homem Dona Maricota! Pra ver se ele acalma. Acalmou.
Contou. Desfiou o rosário de suas mazelas. Destramelou, como se diz no
interior, a falar. Exagerou que só ele. Falou do filho que passava fome, da
mulher que estava doente, do Bolsa Família que tinha atrasado, da falta de
emprego. Só parou quando percebeu que tinha atingido seu objetivo. Consternação
geral. Foi quando Mario Policial teve uma ideia casual. Vamos fazer uma
vaquinha e pagar a fiança do pobre coitado. Comoção geral. Todos queriam
colaborar. Propôs ser o caixa e contribuir com sua parte. Pois a derrama se
realizou e Mario Policial, como de costume, se eximiu do seu quinhão de
colaboração. Juntou o dinheiro dos colegas e pagou a fiança. Propôs ainda que
fizessem um extra de arrecadação e comprasse mantimento para o eletricista.
Mais uma vez sua ideia foi louvada e acatada. Assim foi feito e mais uma vez
ficou incumbido da compra e entrega dos mantimentos. Utilizando-se dessa
desculpa pediu dispensa do restante do dia para cumprir a missão filantrópica.
Seu pedido foi deferido e o policial saiu com o dinheiro no bolso. Passando
pela banca do jogo do bicho resolveu parar e tentar a sorte. Apostou o seu
dinheiro e o da vaquinha. Jogou na vaca. Deu burro. Perdeu. Desolado com a má
sorte saiu a caminhar pela rua e resolveu parar na venda para tomar umas e
esquecer os desalentos “jogatícios”. Nem percebeu que entrara no estabelecimento
de Seu Mario Vendeiro. Tinha conta pendurada lá. Tinha até guardado o dinheiro
para quitar a dívida, mas havia perdido na vaca. Mentiu ao comerciante sua
disposição em pagar a conta, mas que havia feito uma boa ação com o dinheiro
naquele dia e que pagaria o que devia no recebimento do próximo salário. Seu
Mario Vendeiro, escondendo a decepção e a desconfiança da veracidade da
conversa engoliu a justificativa e perguntou o que o levara a gesto tão nobre.
O policial contou que na hora pensou em seu próprio filho e em suas atitudes
caso o menino estivesse passando fome. Seu Mario encheu os olhos de fúria sem
identificar que o cidadão era o mesmo que havia tentado furtá-lo mais cedo. E
não há de ver Seu Mario que o rapaz ainda vai responder processo por furto?!?!
Que sorte é essa? Emendou o policial pensando na sua má sorte no jogo. Seu
Mario foi obrigado a concordar pensando na conta do policial que continuaria
pendurada. É o que sempre digo: que sorte é essa?
* essa é uma estória de ficção
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 22 de maio de 2015
“Policiais civis de Brasília que se
sensibilizaram com a história do homem que
furtou para alimentar o filho descobriram nesta sexta-feira (15) que
o eletricista Mário Ferreira Lima já tinha três antecedentes criminais por
furto em comércio no estado de Goiás, todas de carne. Lima nega que tenha
cometido os crimes, disse que realmente passa por necessidades e declarou que
não quer comentar o assunto.”
(G1 16/05/2015)