sexta-feira, 15 de maio de 2015

Você tem fome de que?



Você tem fome de que?



Mario Vendeiro era conhecido comerciante de Santa Maria, cidade satélite de Brasília, respeitado por sua rigidez com os bons costumes e pelo coração mole com as mazelas do povo sofrido. Mas não era para menos. Tinha chegado da sua longínqua Paraíba quando da inauguração da capital federal em 60 com uma mão na frente e nenhuma atrás, pois era maneta. Comeu o pão que o diabo amassou para arrumar ofício, pois sabia no máximo cuidar da criação de fazenda. O trabalho na edificação do sonho de JK tinha a contribuição do seu suor, sangue e juventude. E foi com trabalho pesado que ele juntou um dinheirinho e montou a Venda Madre Tereza no povoado de Santa Maria. O nome foi sugerido pela esposa em referência a Madre que dedicou sua vida aos pobres e necessitados, como uma critica ao marido pela benevolência e o coração mole que ela entendia excessivos. Se não fosse essa moleza do Mario, já seríamos ricos. Contava a esposa a todos que passavam na rua a lhe dar bom dia. Mas Seu Mario era assim. E assim ia tocando a sua vida de correção e solidariedade. Para que ficar rico? Dizia ele. De que vale aquele povo com tanto dinheiro e egoísta para com o próximo? Que justiça é essa? Ruminava ele a um cliente que entrava na pequena venda. Foi nesse momento que percebeu um movimento suspeito na porta do estabelecimento. Um cidadão mal feito estava tentando surripiar uma manta de carne de sol que pairava sobre a pequena estufa de tela verde que ficava na calçada. Produto artesanal que Seu Mario produzia no quintal de casa, aprendido com a mãe que era sertaneja. Botou a única mão que tinha no ombro do cliente que se encontrava do outro lado do balcão e num salto longo, coisa quase não permitida pela idade e limitação física, saltou por sobre o balcão e correu em busca da captura do meliante. Quase numa cena cinematográfica se embolaram no meio da calçada como novelo de lã o que resultou no rendimento do ladrão. Instaurada a confusão. Ajuntamento de gente foi pouco. Naquela hora da manhã quase não havia passantes pelo local, e os poucos que se encontravam não queriam saber de confusão. Chamada a polícia e entregue o usurpador de carne, limpou o avental e voltou ao trabalho. Sempre fora muito solidário com as misérias humanas, mas não admitia o delito. Sua vida sempre fora exemplo de retidão. Pediu desculpas ao cliente que ainda se encontrava petrificado a beira do balcão, mas não sem antes esbravejar o bordão que o acompanhava: que justiça é essa?
Mario Eletricista foi colocado no porta malas da viatura policial como um pedaço de carne. Mal conseguia erguer a cabeça de tanta vergonha. Era eletricista de formação e
nunca havia se imaginado naquela situação. As pessoas o olhando como se fosse um bandido da pior espécie. Naquele momento lembrou-se do filho de 12 anos que o esperava em casa com alguma coisa para forrar o estômago. Tinha dois dias que não comiam praticamente nada. Na verdade ele tinha saído cedo para fazer um bico na casa do Alaor padeiro. Consertar uma tomada que estava dando curto. Mas dera com a cara na porta. O padeiro anoiteceu e não amanheceu. Um vizinho contou ao eletricista que foi coisa de traição da esposa e que Seu Alaor não aguentou o falatório do povo. Evadiu-se com a família. Mas Mario Eletricista não queria saber da vida particular de ninguém. Sua preocupação era levar comida para casa. Como o bico não deu em nada o jeito era procurar outra solução. Foi quando passou em frente à Venda Madre Tereza e viu uma manta de carne pendurada na estufa. Olhou para dentro do estabelecimento e viu o dono encoberto por um cliente. Num segundo de bobeira o mal tomou sua cabeça. Abriu a porta da estufa e lançou mão no pedaço de carne. Foi quando viu o homem que estava detrás do balcão, num salto plástico, alcançar e derrubar ao chão. Carne humana e de sol. Depois disso se lembrava de muito pouco. A vergonha bloqueou seus pensamentos. Nunca tinha se apossado de nada que não fosse seu. Nem mesmo nos meses em que a esposa passara doente e a família passara por momentos de privação extrema. Tinha seu ofício e dele se orgulhava. Quando a esposa melhorou culminou a crise econômica. Não tinha emprego. Preferiu que a mulher fosse morar com um filho de outro casamento. Não tinha condição de sustenta-la em recuperação. Mas ficou com a incumbência de cuidar do filho adolescente. E assim, às duras penas, ia fazendo. Teve inclusive que se inscrever no plano de ajuda do governo. Bolsa Família. Odiava e se envergonhava disso. Como um trabalhador como eu pode se sujeitar as esmolas do governo? Que justiça é essa? Dizia ele. Agora com a lembrança do filho que estava sozinho em casa a espera de comida, ele era jogado dentro da viatura. Só conseguiu proferir mais uma vez a frase antes que o porta malas se fechasse em um som surdo sobre sua cabeça: que justiça é essa?
Mario Policial era agente. Estava de plantão na delegacia no momento que a viatura estacionou no pátio. Mais um meliante que não teremos onde colocar. Pensou. Com dificuldade para andar por conta de um ataque de gota, foi até o local e ajudou a retirar o homem de dentro do porta malas. Mal conseguia enxergar o rosto do sujeito. Não levantava a cabeça. Olha pra mim rapaz! Esta com vergonha do mal feito? Agora não adianta mais! Botou banca para mostrar quem mandava no pedaço. Sempre agia assim para estabelecer limite aos meliantes. Era uma maneira de tentar suprir a total falta de preparação na academia de polícia. Aliás, preparado mesmo para a função ali na delegacia não tinha quase ninguém. Com exceção da Dona Maricota, a cozinheira, que
era super preparada e fazia um feijão de comer ajoelhado. Fora a falta de preparo dos agentes tinha também o sucateamento das viaturas e a ineficiência das armas. Sem contar a estrutura física que estava caindo aos pedaços. Costumava dizer que aquela cidade era esquecida do mundo. Que justiça é essa? Dizia sempre aos colegas. Foi nesse rompante que começou o interrogatório do meliante. Começou em termos porque o cidadão não parava de chorar. Trás um copo de água com açúcar pro homem Dona Maricota! Pra ver se ele acalma. Acalmou. Contou. Desfiou o rosário de suas mazelas. Destramelou, como se diz no interior, a falar. Só parou quando percebeu que ninguém mais falava. Só havia cara de consternação. E o pior. Ficaria preso pois não tinha dinheiro nem para comida, quanto mais para a fiança. Mario Policial já era calejado desse tipo de situação, mas nunca havia escutado uma história tão sincera e emotiva. Fez o impensado. Tirou dinheiro do bolso e pagou a fiança do preso. Os colegas policiais, também em estado de solidariedade, prometeram fazer uma vaquinha e comprar alimentos para Mario Ferreira e o filho. Levariam mais tarde em sua casa. Despediram-se com um aperto de mão afetuoso e o ex-preso seguiu o rumo de casa. Na saída o policial olhou o homem se afastando e pensou que o eletricista ainda responderia processo por furto, mas tinha certeza que nesse momento isso não passava por sua cabeça. Tinha certeza que o homem só tinha desejo de abraçar seu filho em casa. Foi nesse interim que Mario Policial resolveu que não trabalharia mais naquele dia. Pediu dispensa do serviço. Queria também ir para casa abraçar seu filho. Liberado pelo Delegado saiu a caminhar pela rua e resolveu parar na venda para levar uns mimos para casa. Nem percebeu que entrara no estabelecimento de Seu Mario Vendeiro. Tinha conta pendurada lá. Tinha até guardado o dinheiro para quitar a dívida, mas havia disposto de todo o numerário para pagar a fiança do eletricista. Contou ao comerciante sua disposição em pagar a conta, mas que havia feito uma boa ação com o dinheiro naquele dia e que pagaria o que devia no recebimento do próximo salário. Seu Mario Vendeiro, coração mole, assentiu da justificativa e perguntou o que o levara a gesto tão nobre. O policial contou que na hora pensou em seu próprio filho e em suas atitudes caso o menino estivesse passando fome. Seu Mario encheu os olhos de lágrimas sem identificar que o cidadão era o mesmo que havia tentado furtá-lo mais cedo. E não há de ver Seu Mario que o rapaz ainda vai responder processo por furto?!?! Que justiça é essa? Desabafou o policial. Seu Mario emendou concordando. É o que sempre digo: que justiça é essa?
* essa é uma estória de ficção


Guilherme Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 15 de maio de 2015
santanagui@hotmail.com

"Após tentar furtar 2kg de carne em um mercado de Santa Maria, o desempregado Mário Ferreira Lima foi preso em flagrante. Mas a polícia se comoveu com a história do rapaz: depois que ele contou a história de vida dele, policiais pagaram a fiança e ainda fizeram compras para a família. Entregaram os mantimentos nesta terça-feira (13/5), na casa do suspeito, no Jardim Ingá, cidade do Entorno do DF."
(Correio Brasiliense 14/05/2015)


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