sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

a mais bela tribo


A mais bela tribo

 

          Aurélio Marmelo era nascido em Brasília. Nos idos da década de 80. Cresceu escutando a geração de bandas de garagem que floresceram na capital naquela época. Pura rebeldia. Se ele pudesse escolher uma música para chamar de sua seria “Índios”. Cantava toda a letra de frente para trás e de trás para frente. Acalentava o sonho de um dia trabalhar com indígenas. Lia e relia as histórias dos irmãos Vilas Boas e compartilhava o ideal de preservação daqueles que eram donos primários da terra brazilis. Sonho de criança que com o passar dos anos foi enfraquecendo e se tornando lembrança. Ali guardada no fundo do coração.

          Dr. Aurélio Marmelo se tornou juiz de direito. Dos combativos. Peito aberto em defesa da lei e da ordem. Por muitas comarcas passou até que lhe caiu no colo uma oportunidade que o fez recordar seu sonho de infância. Tinha chance de ser lotado em um local lá para o norte do país. No meio da floresta amazônica. Teria a oportunidade de se aproximar da cultura indígena que tanto lhe povoou a infância. De mala e cuia seguiu viagem. Fora as dificuldades inerentes ao local, trabalhava com afinco. Mas nada de índios. Até que um dia apareceu. Uma demanda de invasão de terra indígena por madeireiros. Era o que precisava. Com todo seu cabedal jurídico fez uma peça ímpar. Usou até trecho de sua música preferida. “Quem me dera ao menos uma vez que o mais simples fosse visto como o mais importante”. Estava orgulhoso do feito. Emitiu documento de reintegração de posse e imediatamente despachou para que fosse notificado o invasor e cumprida a liminar. Sem poder se conter de gozo, quebrando regras de segurança pessoal, pegou uma cópia do documento e foi até a tribo entrega-la pessoalmente. Foram dois dias de viagem até que chegasse ao seu destino. Esperara uma vida para ter aquela oportunidade e nada o impediria de vive-la.

          Cari Guarini foi o nome que recebeu quando chegou a tribo e explicou a todos os motivos de sua visita. Guerreiro branco era o que representava aquele forasteiro para os índios que ora comemoravam a vitória. Há muito sofriam com as constantes invasões dos madeireiros que destruíam sua floresta. Agora era momento de festa. E assim a tribo se voltou para comemorar e agradecer aquele branco que trazia alento ao povo tão sofrido. Foram dias e dias de festa. Assados de caça e bebida entorpecente. Dava gosto de ver um juiz de direito pintado com as cores indígenas e quase nu dançando em volta da fogueira. Parecia que voltava a ser criança. Não sabia nem distinguir os dias das noites de tanto torpor provocado pela bebida que lhe serviam constantemente. Um dia amanheceu amarrado a um tronco. Ainda não tinha recuperado totalmente sua altivez. Oscilava entre a consciência e o sono. Em seu estado mental confuso conseguiu ouvir do cacique que ele seria sacrificado e comido por toda a tribo. E que aquele ato deveria ser visto com grande honra pois só era realizado com grandes guerreiros. Em meio ao torpor e terror que tomou conta de Aurélio, as forças para reagir não lhe acudiram. Por final só conseguiu ver a fumaça da fogueira que era acesa para o seu banquete e escutou ao longe, bem ao longe, uma música que lhe soou familiar. “Quem me dera ao menos uma vez... como a mais bela tribo... dos mais belos índios... não ser atacado por ser inocente...”  

          Ronan Caveiro estava logo ali próximo, na espreita, para realizar o serviço encomendado. Trabalhava fazia muito de jagunço no negócio de extração de madeira. Não tinha muita noção da legalidade daquele trabalho, mas era o que enchia a barriga dos seus filhos. Assim, quando escutou do patrão, que um juizeco tinha emitido liminar para abandonarem as terras que estavam explorando, ficou possesso. Que mané ordem judicial o que? Aqui a lei é o riscado da minha espingarda. Assim sendo, convocou os outros companheiros do grupo e armaram tocaia na tribo. Iriam dar cabo de todos. Não sobraria nada para contar a história. Ali funcionava a lei da selva. Mas faria isso só daqui a pouco. Apesar de já ter visto o sinal de fumaça combinado com os companheiros para o início do ataque, ele esperava acabar uma música que escutava em seu rádio de pilha. Apesar de não gostar nenhum pouco de índios, admirava por demais aquela canção que tocava em meio a chiados de sintonia fraca. Quando acabar a música nós vamos para a lida. “Nos deram espelhos e vimos o mundo doente... tentei chorar e não consegui...”  

           

  

* essa é uma estória de ficção       

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 09 de dezembro de 2016

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