sexta-feira, 6 de junho de 2025

Os ciclos e os círculos

 Os ciclos e os círculos

 

          Ainda pode falar de bebê reborn ou já é assunto antigo? Porque se ainda puder falar vou discorrer minha opinião. Mas antes, para não perder o costume, vou contar uma história. Em 2015 levei minha filha mais velha para se apresentar no Carnegie Hall em NYC, e entre tantas coisas que fizemos na Big Apple, fomos visitar (e comprar também) uma loja de bonecas que era a sensação naquela época: American Girl. O pai bobo aqui achou que seria uma loja comum de bonecas, mas eis que se deparou com um prédio imenso de quatro pavimentos em plena quinta avenida. Embasbacado fiquei. Mas isso tudo aqui é para vender uma boneca? Quando entrei vi que não se tratava de venda e sim de sonho. Aquelas meninas entravam pela porta e mergulhavam num mundo de desejo e realização. E os pais num mundo de trevas e gasto de dinheiro. Cada andar que subíamos eu me surpreendia mais e mais. Salão de beleza para bonecas e “mães”, maternidade e adoção de bebês, pet shop para os pets das bonecas, restaurante, entre outros. Naquele momento, diante de toda aquela exposição, tive um breve pensamento sociológico para onde a humanidade estava caminhando e como a comunicação em redes sociais exponenciava essa relação humana. Também recordei das “paixões” que a minha geração acalentou e de como a teoria de que tudo era cíclico ficava mais presente naquele momento. Tive que comprar (claro) uma boneca para a pequena e mais um monte de acessórios e isso ficou no passado.

             Quando voltamos ao presente, pensando na questão cíclica apresentada na história narrada e no tema da crônica, faço algumas perguntas: seria algum tipo de patologia a adoção de uma boneca como se um humano fosse? Nesse ponto permitam-me outro questionamento: e os pais de pet e de plantas não estão na mesma categoria “patológica” dos pais de bebê reborn? Vamos ampliar mais a discussão: não estariam também nessa classe os cultuadores de cirurgia plástica e procedimentos estéticos? E os mega expostos das redes sociais? Prefiro não entender essas manifestações como patologias ou doenças psicológicas, mas como a falta de algum elemento. O afeto é um deles. Pode causar a retração do ser ou a tentativa de distribuição de maneira irracional. Humanidade é outro elemento. A falta dele pode trazer junto a antipatia. A simplicidade e o altruísmo também entram nessa lista. A falta desses elementos provoca vaidade e ego. E a hiperexposição na verdade pode estar mascarando uma baixa autoestima. No fim das contas também não podemos tomar isso tudo como inédito, pois a humanidade está cansada de passar por esses momentos em que a falta de certos elementos expõe os seres a situações quase ou totalmente vexatórias. Sem sentido. E sem sentido também as reações exageradas a essas situações, colocando barreiras e classificando as pessoas que padecem dessa carência como doidas, párias ou desajustadas. Excluindo-os do seu círculo, criando guetos invisíveis de pensamentos humanos. Todos, os de dentro e de fora do círculo, padecendo do mesmo mal, qual seja, a falta de algum elemento formador do caráter humano.

          Já que todos sofremos do mesmo mal e quando digo todos, não estou me excluindo, sigamos o mesmo caminho de aquisição do que nos falta. Somente um processo de autoconhecimento pode levar a humanidade a se embrenhar nesse caminho de evolução. Fácil? Tenho certeza que não. Mas só pelo fato de entendermos que somos todos carecedores de elementos, passamos a ser empáticos e a entender que todos fazemos parte da mesma jornada. Dessa forma o julgamento pode ser substituído pelo acolhimento. Pensemos sobre isso.      

    

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 05 de junho de 2025

santanagui@hotmail.com

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Pais, Adolescentes e a peneira

 

        Não temos um assunto mais falado no momento do que a série britânica “Adolescência”. A repercussão dos quatro capítulos tem reverberado como uma sirene estridente na consciência das pessoas. Assunto de podcasts, rodas de conversa, teses de doutorado ou simplesmente inquietações nas mentes de pais e adolescentes. Mas não quero aqui falar sobre a série em si no seu aspecto técnico, narrativo ou cinematográfico. E nem analisar os porquês e como. Entendo que um viés pouco falado nisso tudo é o que fazer. Como lidar com os adolescentes nos tempos atuais. Como influir, educar e amparar esses seres que passam por momento tão singular em suas existências.         

        Todo o processo começa na infância, que é o preparatório para toda a vida adulta. É nessa fase que o ser está mais suscetível aos moldes e absorção de conceitos. Como ensina o pensador humanista Gonzáles Pecotche: “a mente da criança é terra virgem e fértil”. É nesse momento que precisamos ensinar os conceitos de bem e mal, de família, de amor a si mesmo e ao próximo, de fraternidade, de evolução, de vida e morte. Mas, no meu entendimento, esses conceitos devem ser transmitidos sem o temor. Com afeto. O temor causa um enrijecimento nas pequenas mentes das crianças em formação que afetará seu ser adulto. Outro fator que ajudará nessa função de educação é o exemplo dos pais e educadores. As crianças são seres muito observadores e tendem a copiar o perfil das pessoas que estão junto delas, como uma esponja seca que absorve a água próxima. Então cabe aos adultos ser esse exemplo para que a criança possa absorver os conceitos de bem. Fácil? Pelo contrário. Esse “ser exemplo” requer uma análise aprofundada de nós como seres humanos, dos nossos conceitos e da maneira como nos relacionamos com o mundo. Em suma, requer obrigatoriamente que sejamos sempre melhores, em um processo de evolução, para sermos melhores exemplos para os filhos.

          Mas aí chega a adolescência. O que faço com esse ser que dormiu terno e acordou revoltado? Não esperem uma receita de bolo, porque primeiro não sou especialista e segundo porque cada ser tem uma maneira e nem sempre o que funciona para um, funciona para o outro. Mas apliquei algumas ferramentas ao longo da educação dos meus filhos que reputo terem ajudado para uma adolescência menos punk. Uma delas é a aproximação com o adolescente. Aquela aproximação que tínhamos quando eram crianças. A nossa tendência, com a mudança de fase, é o afastamento e a famosa frase: “vou sair de perto até que a adolescência acabe”. Penso que isso seja um erro, pois além de todos os medos, incertezas e mudanças que o adolescente passa, ainda vê seus pais se afastarem com se ele tivesse contraído uma doença contagiosa. A aproximação afetuosa é muito importante para que o adolescente entenda que não está sozinho nessa, e que existem pessoas que o amam e o ajudarão com suas dúvidas e incertezas. O cuidado que temos que ter é para que essa aproximação não seja excessivamente controladora, pois o adolescente necessita de espaço, e algo nesse sentido pode causar um sentimento de revolta ainda maior e de clausura do adolescente. Tenha-os sempre perto. Crie atividades para que eles possam participar e momentos especiais como seções familiares para assistirem filmes ou escutarem música. Esses momentos costumam suscitar aquele afeto que sentiam quando criança e fazem com que amenizem seus medos. Aproximação e não afastamento.

          Escutem seus adolescentes. Imaginem que eles estão passando por um momento em que os pensamentos alheios que tinham quando criança estão sendo atropelados pelos pensamentos próprios. As certezas da fase infantil estão sendo substituídas pelas dúvidas. O conforto e acolhimento sendo suplantados pelos afastamentos e estranhezas. Isso tudo dentro da mente de um ser que ainda está em formação. Aí vocês imaginam a necessidade que eles têm de se expressar e contar a alguém como está sendo difícil esse momento. E quem melhor para escutar que os pais? Mas uma escuta inteligente é necessária. Sem julgamentos. Sem o espanto e a incredulidade. Sem a tentativa de adestramento. Sem o “no meu tempo não era assim”. Uma escuta que dê amparo e mostre ao jovem que alguém se importa com ele. Além das conversas uma coisa que ajuda muito é o pai entrar no universo do adolescente. Mais uma vez ressaltando que não de forma intrusiva. Procure conhecer as músicas que ele escuta, as diversões que ele gosta, os jogos que ele joga. Proponha aprender com ele. Solicite que ele te conduza a esse mundo particular que é a mente do adolescente. Dessa forma ele se sentirá útil e seguro de si. Escuta e não julgamento.

          Entendo não ser um desafio fácil a ser enfrentado pelos pais e muito menos pelo adolescente. O entendimento que todos nós passamos por essa fase na vida, e sobrevivemos ao final, acalenta um pouco nosso ser, porém a qualidade como passamos por essa fase da adolescência é que tem que ser observada e enfrentada. Senão ao final teremos jovens e adultos recrudescidos e afastados dos conceitos de bem que receberam quando criança. E essa responsabilidade de guiar o jovem ser nesse caminho tortuoso é nossa como pais. Terceirizar a educação de nossos filhos talvez seja a maior causa de desalento entre a juventude e não enfrentar essa responsabilidade fere de morte a função de pais e educadores. É preciso enfrentar com coragem e perseverança, para que não possamos em momentos como esses, nos assombrar com a cruel realidade de uma série, mas ao contrário, termos certeza da nossa contribuição para o bem de nossos filhos. O restante é tapar o sol com a peneira.

    

  

         

 

 

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 04 de abril de 2025

santanagui@hotmail.com

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Natal na casca de noz

 

Natal na casca de noz

 

Os que me conhecem de “faz tempo” sabem que não resisto a uma crônica de Natal. Época emotiva, reflexiva e palco de todas as histórias. Volta ou outra esqueço-me desse fenômeno como um lapso na memória de um possível demente, mas quando vejo, escuto, sinto determinadas coisa, é como se voltasse aos tempos de outrora. Papo de gente velha e saudosista. Porque começo nesse processo. Do passado ser maior que o futuro. E o Natal faz parte desse portentoso passado. Suas luzes piscando, sua harpa natalina e a casca de noz. Olha que coisa interessante. A casca de noz. Não a do Stephen, mas a minha. Aquela que via sobre a mesa na casa de Tia. Sabe as que vem dentro de um saco de rede amarela com fios? (Não consigo descrever mais que isso). A memória lúdica as vezes é maior que as palavras para descrever. Elas, as nozes, ficavam espalhadas pela mesa. Lado a lado com as nectarinas, pêssegos, uvas e chocolates sonho de valsa. As nozes não eram o alvo de preferência principal senão os invólucros brilhantes de cor que não sei descrever nesse momento de devaneio representados pelo casal bailando valsa. Mas as nozes eram obstáculos. Vinham em cascas. Proteção impenetrável eficaz contra invasões indesejadas. Poucos ousavam tentar tal feito. Conspurcar seu invólucro sagrado em busca de amêndoa tão noz. Assim como a vida. Fechada e misterioso a espera de quem busca desvendá-la. Com a ferramenta certa e a sutileza das leis de Newton, rompe-se as camadas de fibra que levam ao prêmio. Gosto por demais do sabor de guardado, mas ainda mais adoro romper-lhe a casca. Como na vida. O desafio do caminho sendo mais gozoso que o efêmero júbilo da vitória. A noz como fim de caminho longo, ardiloso e dificultoso. Mesmo que saísse inteira. Sem máculas. Indo direto à boca como prémio de processo perfeito. Sempre como a vida. Segue. Depois vem os chocolates. Troféus da glicose efêmera. Mas nunca me esqueci da noz em casca. Ali a se mostrar com esfinge. Devorando quem não tentasse decifrá-la. Tácita. Permanente. Misteriosa. Presente. Como a vida. Sempre.

 

Guilherme A. Santana

25 de dezembro de 2024

santanagui@hotmail.com

sexta-feira, 31 de maio de 2024

C. de Goiás

 C. de Goiás

 

         

Ao Presidente do Departamento de Infra Estrutura de Transporte – DNIT

Nesta

 

          Caro Presidente,

Venho, muito humildemente, através desta, lhe contar uma história. Caso V. Sa. não esteja familiarizado, às sextas eu costumo escrever crônicas sobre assuntos diversos, e desta vez calhou um objeto do vosso interesse. Antes de mais nada, lhe apresento como um cidadão que utiliza regularmente as rodovias do país e por isso sente-se no lugar de fala para abordar o assunto em tela.

Passados os interlocutórios de apresentação, vamos ao que nos trouxe a essa missiva. Estava eu viajando esse dias atrás, com minha família, rumo a um ponto turístico bem famoso de Goiás. Trata-se do famoso Salto do Corumbá. Aliás, se V.Sa. não conhece o salto, recomendo. Maravilha. Mas voltemos ao assunto. Estava trafegando pela BR-414 que dá acesso ao salto quando me deparei com cena pitoresca para não dizer burlesca. Determinada placa de sinalização da rodovia constava dos seguintes dizeres:

C.de Goiás  27 km

A. de Goiás 35 km

peço desculpas se as quilometragens não são precisas pois não tive como tirar foto, afinal estava dirigindo. Mas de qualquer forma esse dado não vem ao caso. Na hora que vi os escritos confesso que tive vontade de rir, porém logo veio uma outra reação: indignação. E aí aproveito e pergunto a V.Sa. onde estava com a cabeça a pessoa que escreveu essa placa? Eu me fiz essa pergunta, sabe? Perguntei-me também o que estava implícito nas letras abreviadas. Sabe quantos municípios de Goiás começam com a letra “A”? Vinte e nove! Tudo bem que só quatro deles tem o sufixo “de Goiás”, mas daí precisaríamos de uma aula de geografia para identificar qual se trata. Os que principiam com a letra “C” são trinta. Para o transeunte se localizar ele teria que ser expert em nomes de municípios do Estado e, além disso, fazer um jogo de adivinhação. Muitos podem alegar que existem municípios homônimos, como é o caso de Corumbá e Teresópolis. Porém seria hilário pensar que teríamos uma placa, transitando dentro de Goiás, com indicação de quilometragem para a Corumbá do Mato Grosso do Sul. O mesmo se aplica a Teresópolis do Estado do Rio de Janeiro. Aí eu volto a pergunta: onde estava a cabeça do cidadão que escreveu essas placas que suprimiu a informação mais importante de comunicação? Depois de me questionar pensei algumas hipóteses. Coisa rápida enquanto passava a indignação. Será que estavam economizando o tamanho das placas? Será que foi obra de algum estagiário? Será que o “A” seria de “abestado”? Enquanto me questionava, seguindo na rodovia, passei por outra placa com a mesma aberração e percebi que não se tratava de um erro pontual e sim um assassinato em série.  

          Contada a história meu caro Presidente, e com a devida vênia sem me alongar mais no caso, acho interessante a intervenção de V.Sa. na lide antes que cause uma desorientação nos usuários da rodovia, ou vire caso de polícia, ou piada.

 

Prestando minhas imensas estimas de saúde, pede deferência.

 

G. de Goiás

 

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 31 de maio de 2024

santanagui@hotmail.com

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

 

Cura para o que não é doença

 

          Esses dias chegou até mim um funcionário oferecendo uma rifa. A princípio nada de diferente visto que volta e meia esse artifício é usado para alguma causa urgente ou sonho recorrente. Como é do meu costume especulei para que seria o recurso arrecadado e a resposta me remeteu à minha vida. O motivo era levantar fundos para pagar um exame neuropsicológico diagnosticando TEA e TDAH para o enteado. Não fosse minha relação pessoal com o TEA, ainda sim seria uma causa a aquecer o coração, então contribui de bom grado. Só o afeto faz dessas coisas.

          Esse mesmo teste, objeto da rifa, realizei com meu filho mais novo por esses tempos. O resultado positivo ao Transtorno de Espectro Autista descortinou toda uma vida antes desconhecida. Primeiro vieram as respostas (coisa diferente porque antes vem as perguntas) à muita coisa que não entendia. Coisa natural visto que o entendimento vem do conhecimento, e até aquele momento, eu não detinha o conhecimento. Muitas reações e comportamentos do filho, desde a infância, foram sendo explicados pelas características do autismo. Parece que é tirado um peso das costas do pai que por muitas vezes se sentiu incapaz de educar o filho da maneira culturalmente convencional. Depois das respostas, invertendo o processo, vieram as perguntas. Uma enormidade de questionamentos e dúvidas sobre o transtorno e de como lidar com ele. Aquela culpa que havia me livrado quando escutei o diagnóstico voltou de forma redobrada. Será que tenho capacidade para educar e conviver com um filho autista? Será?

          A primeira coisa que aprendi é que o autismo não é uma doença e sim um jeito de ser. Portanto não há de se falar em cura para aquilo que não é doença. Um axioma difícil de absorver. Não tem cura, mas tem tratamento. Para quem é portador do TEA e para quem convive com ele. Quase uma reeducação. Sabe quando a professora do primário ensina condutas básicas aos seus alunos como “não pode morder no amiguinho”? É mais ou menos isso. Aprender do princípio como lidar com os seres humanos. Seus jeitos de ser e de se manifestar. Como se voltasse a estaca zero no processo de se conhecer como ser humano e como se relacionar com seu próximo. E o que é preciso e necessário de tratamentos nesse processo de reeducação? Lançar mão do conhecimento. Ferramenta essencial, pois, sem ela é como andar em campo minado vendado. Paciência também é muito bem-vinda, de preferência em grandes doses. Resiliência para fletir e não quebrar fica no esteio do tratamento. Empatia serve à compreensão. Afeto funciona na solidificação. Aliás se tivesse que eleger um tratamento essencial, esse seria o afeto. Melhor que qualquer remédio e qualquer oração. Poderoso catalisador de compreensões humanas e solidificar de sentimentos bons.

          Ao final, mesmo que não tenha chegado a ele, entendo que todo o processo é lento e constante. Por isso a paciência. Não se aprende a andar sem engatinhar. É um processo de redescobertas e ressignificados. Palavras novas são aprendidas e sentimentos novos são descobertos. Por isso não é uma doença e sim um renascimento. Um ressurgimento de quem é portador do TEA e daqueles que o amam incondicionalmente. Puro afeto.

 

           

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 05 de janeiro de 2024

santanagui@hotmail.com


sexta-feira, 10 de março de 2023

 

Sobre vida, morte e sapatos

Hoje o dia amanheceu daquele jeito. O caos completo. Problemas em todas as pontas. Antigos e novos, todos resolveram dar as caras nessa sexta feira embaçada. E nem bem o dia esquentou, já estou sentado na minha sala, olhando pela janela e pensando em chutar o pau da barraca antecipando assim o fim de semana. Como se isso fizesse todas as intercorrências sumirem. Nesse devaneio matinal, avistei da janela uma família que chegava para um velório (relembrando que trabalho em um cemitério) e, já ao pé da escada, se abraçavam em meio a lágrimas de despedida. Uma cena cotidiana para quem tem por ofício proporcionar a guarda de memórias sob sete palmos. Lembrei-me do Seu Vilmar sapateiro na hora. Uma pequena explicação sobre seu Vilmar: possui uma banca de engraxar sapatos em uma praça muito tradicional em Goiânia. Daquelas figuras pitorescas da cidade. Depois da digressão volto à lembrança. Esses dias estava entre um compromisso e outro no centro da cidade e passei na frente da banca do Seu Vilmar. Tinha tempo que não engraxava sapato então resolvi, de impulso, parar. Ele me atendeu com a simpatia de sempre. Senta, prepara, graxa. A princípio em silêncio. Ambos. Uma pessoa entra na banca e entrega uma sacola e um copo de café. Ressalta: Vilmar aí tem um enroladinho de queijo quentinho e um café. Depois dos agradecimentos e da saída do cidadão, pergunto se era cliente. Sim há 18 anos. Fala com a boca cheia de orgulho. Puxo o fio do assunto. Desde quando está nesse ponto engraxando? Esse ano fazem 24 anos. Aliás esse mês completa aniversário. Demonstro minha surpresa e pergunto se hoje estava melhor ou pior do que no tempo em que ele começou. Ele comenta melancolicamente que antigamente era melhor. Mais pessoas e menos carros. De bate pronto me pergunta se sou advogado. Devo ter cara de. Abro um sorriso e conto-lhe meu ofício. Coveiro. Ele responde o sorriso e abre a caixa de dúvidas. Tudo isso enquanto a flanela canta no sapato. Tinha dúvidas sobre cremação. Perguntou e eu respondi. Então como num passe de mágica, o que ocorre na maioria das vezes com pessoas que conversam com coveiros, começou a explicar sua relação com a morte. Disse que não a temia. Que tinha mais receio de ficar inválido do que de morrer. Começou a passar a graxa e contou sobre como cuidou de pai e mãe nos momentos finais. Partiram e ele ficou tranquilo. Sensação de missão cumprida. Disse que nem chorou. Quem chora muito em enterro é porque ficou devendo algo ao defunto. Boa tese. Disse ainda que valia era viver. Viver bem. Trabalhar. Conhecer e servir pessoas. Nas últimas flaneladas de polimento do sapato aproveitou para finalizar sobre como gostava daquele lugar, mesmo tão mudado de quando ele iniciou o ofício. Finalizou, paguei, despedi e parti. Ele ficou. Continuava o ofício e o gosto pelo trabalho e pelas pessoas. Quando, voltando ao começo da crônica, lembrei do Seu Vilmar, o que me puxou foi a cena do choro da família diante da morte que via da janela, porém estava enganado. Apesar de termos falado sobre morte e sapatos, o que me puxou naquele momento foi a vida. Expressa em palavras simples e singelas, porém de uma transcendência ímpar. A vida vivida nessas dezenas de anos com seu trabalho e as pessoas a mudarem ao seu redor. A vida com seus problemas e suas satisfações.

 O céu aqui continua embaçado e os problemas permanecem os mesmos. Talvez o que tenha mudado seja a forma de como encará-los. Resignação por não poder desnublar o dia, mas resiliência para poder iluminar a vida.

Guilherme Augusto Santana

10/03/2023       

domingo, 14 de agosto de 2022

Ser Pai ainda é...

 

Ser Pai ainda é ...

 

... acordar mais cedo e fazer café mesmo que os filhos já consigam fazer sozinhos.

... chegar cansado do trabalho e se dispor a passar a matéria da prova do dia seguinte.

... perder noites de sono pensando qual profissão o filho vai escolher.

... escutar as conversas de pegação da balada e fazer cara de paisagem.

... fazer waflle com nutella às sextas, mesmo que isso estrague a dieta.

... escutar os filhos tocando e achar aquilo a coisa mais maravilhosa do mundo.

... se pegar chorando ao relembrar os primeiros passos.

... fazer caça ao tesouro mesmo que a filha já tenha 17 anos.

... estar disposto a ir buscar nas festas a qualquer hora da madrugada.

... arrumar um pretexto para ficar juntos e pegar no pé.

... estar no meio de uma reunião de trabalho e responder ao WhatsApp com um emoji.

... ser caçoado por ainda usar emojis nas conversas de WhatsApp.

... abraçar bem apertado mesmo quando os filhos não querem.

... ver os preparativos para um presente-surpresa e fazer cara de espanto ao recebê-la.

... perder noites de sono pensando nas adversidades que os filhos irão enfrentar.

... pegar no colo sempre.

... perguntar sempre como foi na escola mesmo já sabendo a resposta.

... assistir seções de filmes juntos com direito a debates ideológicos.

... entender que as gerações são diferentes e é preciso evoluir a maneira de pensar.

... se emocionar ao ver um filho ouvir uma música que você gostava.

... abraçar os amigos dos seus filhos como se fossem seus.

... ir dormir por último para ter a certeza de que todos estão seguros.

... falar sobre todos os assuntos, mesmo que isso cause um desconforto.

... tratar sobre sexualidade e abandonar os velhos preconceitos da juventude.

... acostumar-se com genros e noras, independente do gênero do filho.

... deixar a casa aberta para as baladas para mantê-los mais perto.

... deixar de fazer o seu para fazer o dele.

... estar sempre por perto quando as decepções veem.

... sofrer de dor quando o filho sofre de amor.

 

 

Ser pai ainda é ...

 

Participar, ajudar, sofrer, ensinar, chorar, se emocionar...

 

É saber que a partir daquele momento você nunca mais será o mesmo, e ter orgulho disso.

 

Mais do que nunca sou pai.

 

Guilherme Augusto Santana

14/08/2022