Como estarei na estrada amanhã, a de sexta vai na quinta. Último dia de Bahia.
A primeira reflexão do ano
São nove horas da manhã e como seria lógico, deveria estar indo para praia, afinal estou na Bahia. Sol, mar, camarão... quase um paraíso. Quase. Estou sentado na fila do posto de saúde do Distrito de Cumuruxatiba. Município de Prado, Estado da Bahia. Isso aqui não é o paraíso, com certeza. Olho para os habitantes que, assim como eu, esperam a hora de serem atendidos. Diferença? Eu passo por isso raramente. Eles, a vida toda. O posto é até grande. Têm várias salas, cadeira de dentista, farmácia, sala de sutura, sala de vacinas... tem até ambulância! Será que finalmente o sistema único de saúde desse país condiz com sua função? Pior que estou aqui pela segunda vez essa semana. Isso merece uma explicação. Darei em seguida.
Um dia após o ano novo meu filho mais novo, Otávio, começou a passar mal. Febre, vômito, dor de garganta e agregados. Coisas de crianças. Entra na comida diferente, aliado com excesso de doce, gelados e frituras e aí pumba! Liga no médico em Goiânia e inicia os medicamentos. Pai prevenido tem quase uma farmácia inteira na mala. Mas a indisposição da criança só aumentava. Tomada a resolução. Posto de saúde. Chegamos lá e... fechado. Aviso na porta. Voltamos a funcionar dia dois de janeiro. Mas que dia era? Dois de janeiro! Acho que o pessoal aqui não segue o calendário muito a risca não. Nesse momento chega outra paciente ao posto de saúde. Uma mulher trazendo a filha com o nariz sangrando. Com certeza moradora da vila. Pergunto se ela conhece o médico da cidade. Ela me responde que sim e diz que vai ligar atrás do doutor. Escuto a conversa com interesse. Ao findar ela me diz que ele vai nos atender em sua residência. Pergunto se sabe onde mora o médico e ela responde positivamente. Proponho uma carona para ela e a filha contundida. Ela aceita e nos encaminhamos ao endereço. Quando chego percebo que a casa é grande e de frente para o mar. De repente aparece o médico. Um senhor de meia idade com roupa de veranista e cara de paulista. Ele examina a menina com o nariz machucado ali no portão mesmo. Receita gelo. Só. Diz que se tivesse aparelho de raios-X faria uma chapa. Não tem. Fica nisso. Só faltou receitar o chá de camomila para acalmar. Manda a paciente embora. Chega a minha vez. Explico a prosopopeia do meu caso. Ele pergunta se estamos de carro e pede para irmos ao posto de saúde para que ele examine meu filho. Acho-o prestativo. Chegando ao posto ele explica que o mesmo deveria estar aberto, mas o Prefeito havia dado ponto facultativo aos funcionários. Resultado? Ninguém apareceu. Examina e preenche ficha. Olha ouvido, garganta e brinca com Otávio. Pergunto quantos anos está em Cumuruxatiba. Quatro anos ele me responde. É de São Paulo. Acertei. Usa um colar de índio. Parece um Xamã. Curandeiro. Faltou só o nome de batismo tupi. Acho-o pitoresco. Receita antibiótico e anti-inflamatório. Diz que tem duas notícias para mim. Uma é que o caso não é grave e a outra é que devo cem reais pela consulta. Acho-o mercenário. Mas quando me recordo da menina do nariz machucado meu coração aquieta-se. Ao menos eu tenho condição de pagar e ter um bom atendimento, mesmo que o sistema, na teoria devesse ser público e gratuito. Ao sair, como numa tentativa de justificar a cobrança, ele me leva na farmácia e me mostra os medicamentos nas prateleiras. Quase nada. “Está vendo esses medicamentos coloridos? Eu os trago de São Paulo quando vou de férias. A prefeitura não fornece quase nenhum medicamento. Injetável nenhum. Equipamento pode esquecer. Pessoal pouco. Pedi verba para pintar o posto de saúde e o Prefeito preferiu alugar um trio elétrico para o Reveillon. A água do poço é contaminada. A fossa, quando chove, transborda. A caixa d’água não é lavada há anos. Recebo meu salário com atraso, quando recebo. Ou seja, faço o que é possível”. Acho-o um herói. Fui embora com um misto de amargura e alívio. No fim da semana estarei de regresso. As mazelas vão continuar aqui.
Tem seis pessoas na minha frente para serem atendidas. Às vezes sinto-me envergonhado por estar utilizando um sistema de saúde, que na prática, é utilizado somente por carentes. Seria como estar pedindo para dividir comigo o pouco que lhes resta. Sei que esse pensamento é errado, mas não consigo me furtar em tê-lo. Enquanto espero fico pensando nos milhares de distritos pobres espalhados pelo Brasil e nos milhares de médicos que se tornam as pessoas mais importante na vida daqueles habitantes carentes. Penso no Dr. Carlos Magno de Melo, meu Tio, um desses heróis sem reconhecimento que clinicam pelo país afora tentando amenizar a dor dos que padecem. Sinto que precisávamos de mais políticos assim, como os médicos. Xamãs. Curandeiros. De homens e de almas. Chega a minha vez de ser atendido. Entro novamente na sala do médico. Acho-o familiar. Como um velho Tio de família. Amanhã vou embora. As mazelas ficam. Elas sempre ficam. Até quando?
Guilherme Santana
Cumuruxatiba (distrito pobre de Prado-BA), 05-01-12
santanagui@hotmail.com
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