sexta-feira, 27 de março de 2015

Cri(s)e


Cri(s)e

 

 

            Hoje como de costume acordei cedo. Como de costume também fiz café da manhã para os filhos e a esposa. O cachorro também ganhou sua porção diária de ração. Levei menino na escola e parti para o trabalho (sem hastag). Liguei o rádio, também como de costume, numa estação de notícias e observei o tempo cinza que pairava sobre minha cabeça. Cinza como as notícias que inundavam os meus ouvidos e mente. Crise na Petrobrás, crise mundial, crise financeira, crise política. Crise no café da manhã. Nenhuma boa notícia. Nem para remédio. Cheguei ao trabalho e enquanto o computador “aquecia” fiquei pensando na situação atual. Na crise que se formava sobre nossas cabeças como o tempo cinza que pairava lá fora. Eminência de caos. Todos reclamando e todos reclamados. Todos sem dinheiro e dinheiro em falta. E de repente um desânimo se abateu sobre minha cabeça. Como o tempo cinza que já desabava em chuva lá fora. Uma chuva de más notícias e tragédias anunciadas. Como num reflexo fechei a tela do meu lap top e fiquei indeciso entre tomar um copo de formicida ou comprar um estoque de barras de cereal e água e correr para me trancar em casa. Foi nesse momento que uma luz desceu do céu... mentira... na verdade olhei para o computador fechado e mirei na marca estampada em letras prateadas da tampa. Na hora me veio a lembrança uma história que tinha lido no livro “Oportunidades Disfarçadas” de Domingo Carlos. Permitam-me dividi-la com vocês.

           

Um jovem japonês de nome Kamashio encontrava-se na Europa logo após o término da segunda guerra mundial. Isso devia ser em meados dos anos quarenta. Sua missão era vender rádios de fabricação japonesa. Porém ele encontrava dois obstáculos pela frente. Primeiramente, que naquela época, os produtos japoneses eram vistos pelo mundo ocidental como de má qualidade. Segundamente que um japonês na Europa era visto com desconfiança devido a guerra recém-finda que teve a participação do Japão no polo “destrutivo” do continente europeu. Dois grandes obstáculos. Pensa na situação do jovem. Mas seguindo a contenda, ele se encontrava especificamente na cidade de Hamburgo, Alemanha e parado de frente uma loja de instrumentos musicais, ofereceu seu produto ao comerciante da loja. O mesmo recusou dizendo que ninguém se interessaria por um rádio japonês. O jovem vendedor não se deu por vencido e ofereceu ao comerciante uma quantia em dinheiro para que seu produto ficasse exposto na prateleira da loja. O comerciante, vendo oportunidade de faturar um à vista, aceitou. Assim foi feito. Kamashio ficou dias em frente à loja observando o entra e sai e nada de alguém se interessar pelo seu produto. Foi quando vendo um grupo de jovens estudantes ruidosos passar pela rua teve uma outra ideia. Chamou os estudantes e mostrou seu rádio. Diante da novidade os jovens gostaram, porém não tinham dinheiro para comprar o eletrônico. Foi ai que o vendedor fez uma proposta. – Dou o dinheiro e vocês entram, um a um, naquela loja para olhar o rádio. Após escutarem e tecerem mil elogios comprem o produto. Saquem o dinheiro que lhes dei e quitem a compra. Ao sair da loja me devolvam o rádio e eu pago uma comissão pelo serviço prestado. Vendo oportunidade de faturar um extra, os estudantes toparam a proposta e assim fizeram. Um a um foram entrando na loja, pedindo para escutar o rádio, tecendo os elogios e comprando o produto. Ao sair da loja, na esquina, devolviam o rádio ao vendedor e recebiam seu “pagamento”. Assim o vendedor gastou todo o dinheiro que tinha trazido consigo do Japão além dos rádios. Uns dias depois se dirigiu o jovem vendedor japonês à loja e perguntou ao comerciante como estavam as vendas. Foi quando, entusiasmado, o comerciante disse que surpreendentemente a aceitação tinha sido um sucesso e que queria encomendar mais rádios. Pronto. Estava introduzida a marca na Europa em meio à crise econômica e política pós-guerra. Depois disso os rádios caíram no gosto dos jovens e a marca se tornou uma potência no mundo todo. Sabem que marca era essa? A mesma que estava gravada em letras garrafais na tela do meu lap top.

           

Imediatamente depois de recordada a história, num lampejo de animo, voltei a manusear o meu computador Sony em busca de organizar as ideias. Naquele momento fiz o propósito de não abaixar a cabeça para a crise. Quase um juramento. Enfrentarei a “besta” de cabeça erguida. Não quer dizer que agirei de forma temerária como se nada estivesse acontecendo. Entendo que o tempo realmente está cinza, mas não quer dizer que o sol tenha apagado. Ele continua lá a brilhar apesar de tanta barbaridade (Cazuza). Vou continuar fazendo a minha parte. Trabalhando, produzindo, pensando, educando meus filhos e criando. Uma hora a tormenta há de passar. E finda a tempestade o sol nascerá (Cartola).    

           

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 27 de março de 2015

sexta-feira, 20 de março de 2015

o líder


O Líder

 

Numa das muitas cidades do interior do Brasil, nem capital, nem currutela se passou o fato narrado a seguir. Como em grande parte do país, inconsolados e revoltados com os recentes escândalos de corrupção aliados a volta sorrateira e camuflada da inflação, cresceram os intentos de organizar uma manifestação. Não é porque não somos cidade grande que não temos o direito e o dever de protestar. Bradou o líder dos produtores rurais na reunião que se iniciava com as cabeças pensantes do município. Concordo com o senhor e digo que temos que fazer muito barulho para sermos escutados em Brasília. Corroborou o chefe da resenha dos funcionários públicos. Seguiu-se então uma avalanche de apartes, colóquios, observações e opiniões entusiastas que fariam qualquer patriótico encher os olhos d´água. Terminada assim a reunião com todos de mãos dadas cantando o hino nacional, marcaram o manifesto para coincidir com os demais espalhados pelo país. Nesse interim, cada um corria para um lado. Arruma carro de som, manda fazer bandeiras, panfletagem, convoca as pessoas, pede donativo para o lanche e demais preparatórios para a grande manifestação. Não podemos fazer feio diante da nação. Cochichou o Prefeito ao pé do ouvido do secretário da horta comunitária. A discórdia começaria aí, pois o chefe do poder executivo municipal, vulgo Seu Zé do Açougue, era de partido da base do governo federal, portanto podia participar da manifestação mas de maneira extra oficiosa. Sabe assim por baixo dos panos? Mais ou menos isso. O pessoal da oposição achou o cavalo arriado na porteira porque poderia capitalizar politicamente e ainda alfinetar o Prefeito por estar “omisso” à vontade popular. O pessoal da prefeitura estava dividido. Os que “gostavam” do Prefeito não sabiam se apoiavam o movimento fingindo não apoiar ou não apoiavam fingindo apoiar. Já os desafetos do Prefeito, ao contrario, não sabiam se não apoiavam fingindo apoiar ou apoiavam fingindo não apoiar. E havia aqueles que preferiam assistir o Caldeirão do Huck que ia dar no mesmo horário. Sei que no dia do fatídico protesto estava lá metade da população do município que apoiava o movimento e a outra metade que fingia. Todos juntos esperando o início do movimento. No carro de som se acotovelavam as autoridades, lideranças e os papagaios de pirata. Todo mundo querendo capitalizar. Todo mundo não se entendendo. Decidiram então pedir calma a turba popular que já se formava por falta do lanche prometido e definir as regras do protesto. Primeiramente fizeram um toró de ideias (brainstorming) para eleger a motivação. O que vamos pedir. Seguiu a avalanche. Impeachment da Presidenta. Alguém lembrou quem era o vice. Melhor não. Tira da pauta. Volta do regime militar. Alguém lembrou o pau de arara. Gosto não. Tira da pauta. Aumento dos salários dos funcionários do município. Alguém (no caso o Prefeito) lembrou que não tinha nada a ver com a contenda. Melhor não. Tira da pauta. Depois de muito põe e tira da pauta, restaram a paz e o fim da corrupção. Coisa bem objetiva. Escolhido o motivo partiram para eleger um líder. Senão vira bagunça. Aí que o caldo entornou. O Prefeito não podia ser porque estava fingindo apoiar e a oposição não aceitaria. Melhor não colocar nenhum político. Eliminou um tanto. O líder dos produtores rurais requisitou o cargo mas foi rechaçado por estar respondendo processo. Deu uns sopapos na mulher. Decidiram então que só podia se candidatar os fichas limpa. O padre então, com um sorrisinho de canto de boca, avocou o cargo. Melhor não porque o Estado é laico e os evangélicos não iam gostar nada disso. Logicamente que Dona Euclidina, professora da escola, teve de explicar para a maioria o que significava a palavra “laico”. Aproveitando a explicação catedrática, a professora pensou que seria a melhor opção, mas logo lembraram que ela era funcionária fantasma da Câmara dos Vereadores e Professora do Estado, o que, via de regra, não era muito católico. E ficou esse candidata e descandidata por um tempo. Enquanto isso Seu Antônio Padeiro fez o favor de ceder uns pães à população que esperava para satisfazer a fome do corpo. Dona Maria Antonieta, proprietária da pensão, comeu brioche. Depois de muito discutir, resolveram que ninguém daquele pequeno grupo tinha reputação ilibada suficiente para liderar o movimento. Resolveram então angariar a liderança no meio da população que esperava pelo manifesto. Juca Pijama, o locutor da rádio comunitária, foi ao microfone do carro de som e com tom locutório explicou o intento à população. Vamos portanto, escolher um líder para nosso movimento. Por favor, fiquem todos do lado direito do carro de som. Assim obedeceram. Pois vamos começar a quadrilha... quer dizer a seleção. Por favor, quem tem problemas com a justiça ou responda processo por delitos por favor se dirija para a esquerda do carro de som. Roubo de galinha vale? Perguntou Tião Galinha. Qualquer delito. Precisamos de um líder ficha limpa. Seguindo a ordem um tanto de gente trocou de lado. Quase metade. Pois continuemos. Quem sonega imposto, tem emprego fantasma ou emprego arrumado por algum político favor vir para o lado esquerdo também. Mais um tanto de gente deslocou para o outro lado incluindo a professora Dona Euclidina. Foi raleando os do lado direito. Então vamos. Quem estaciona em local proibido, em vaga de idoso só para ir rapidinho na farmácia e em fila dupla para buscar o filho na escola, por favor à esquerda. Quase todas as mães se deslocaram. Menos gente ainda foi restando. Agora quem torce pelo Corinthians favor deixar a passeata. Ouviram-se vaias e o locutor que era palmeirense desistiu do critério de seleção. Continuemos. Quem possui carteira de estudante adquirida do Zezinho Mão Leve, faz download de filme não autorizado e compra DVD pirata favor se juntar a maioria do lado esquerdo. E nessa ladainha foram todos mudando de lado e restando bem poucas opções para o desespero de todos. Foi nessa toada até restar uma só viva alma (até porque os mortos não entraram na escolha por motivos de erro material). Uma senhora. Estava ali sozinha igual aroeira em lavoura de soja. Tinham achado seu líder. Melhor ainda que fosse uma mulher porque igualava com o gênero da Presidenta. O locutor que era míope fez força para enxergar quem era e precisou do Chiquinho Coroinha soprar ao seu ouvido. É Dona Corru. Corruélia do Espírito Santo era seu nome. Pela dificuldade de pronúncia tinha ficado a abreviação Corru. Assim era conhecida. O locutor gritou ao microfone. Dona Corru aceitas ser nossa líder? Nenhuma manifestação. Repetiu a pergunta. Nada. Foi aí que o mesmo Chiquinho lembrou a todos que Dona Corru era meio surda. Então vai lá menino perguntar a ela se aceita o cargo! Chiquinho desceu e travou com a senhora uma batalha de sinais para explicar a celeuma, visto que Dona Corru tinha ido ao protesto por conta do lanche que seria servido. Inclusive reclamou que a manteiga servida pelo Antônio Padeiro estava rançosa. Capaz que ele quis fazer desova de estoque e por isso ofereceu de graça. Depois do desabafo o menino de recado voltou correndo ao carro de som para transmitir a resposta da Dona. Olha, aceitar ela até aceita, mas pediu que se puder assinar a carteira de trabalho só daqui três meses ela agradece. Esta recebendo o seguro desemprego. Ah e tem outra coisa. Ela quer colocar a filha como secretária e quer manteiga ao invés de margarina no seu pão do lanche. Foi um desacoçoamento geral. Um balde de água fria nos ânimos. Seria realmente Dona Corru a opção? Mas naquela altura do campeonato não tinham como recuar. O que não tinha remédio, remediado estava.

           

- Corru é a opção!

 

A população gritou vivas seguido de uma salva de foguetes e seguiram com o cortejo... quer dizer com o protesto.

 

 

* Usei as cores do Brasil para pintar a cara e pedir o impeachment do Presidente Collor e tenho o maior orgulho desse fato. Nada mais democrático que a manifestação popular. Contra ou a favor de algo ou alguém. Todo movimento democrático é válido desde que seja isento de violência e intolerância, mas acredito que o principal movimento de mudança tem que ser o interno. Dentro de cada cidadão. Quando entendermos o que é realmente cidadania teremos governantes à nossa altura. Os líderes simplesmente refletem seus liderados.               

 

           

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 20 de março de 2015

sexta-feira, 13 de março de 2015

Neros e seus incêndios


Neros e seus incêndios

           

            Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus, ou simplesmente Nero, foi, depois de Júlio César, o mais famoso imperador romano. Não tanto pela sua soberania ou sapiência ao governar, mas muito mais relacionado à sua violenta extravagância. São atribuídas a ele diversas atrocidades como as execuções de sua própria mãe e irmão, além da perseguição implacável aos cristãos. Mas de todos os fatos o que lhe é mais obscuro na História, é uma suspeita de que seria o causador do grande incêndio em Roma ocorrido no ano 64 d.C.. E reza a lenda que a causa do incêndio delituoso seria a de reconstruir a cidade à sua maneira e vontade. Sem dúvida nenhuma um histórico piromaníaco louco.

 

            Essa semana ocorrerá o fim de outro famoso personagem também com características insanas e incendiárias. Encarnado pelo quase homônimo ator Alexandre Nero, o Comendador José Alfredo Medeiros foi sem dúvida nenhuma um fenômeno de popularidade e discordância. Daqueles personagens que entram para os anais da teledramaturgia brasileira com direito a figurar no topo. Top Tem. Incendiou o imaginário feminino e provocou a inveja do masculino. Todas queriam o Comendador. Todos queriam ser o Comendador. Estão achando que exagero? Pois então vamos lá aos fatos:

 

1)    Pensa num cidadão que saiu da pobreza extrema e se tornou um dos cidadãos mais ricos do Brasil com direito a diamante rosa (que tenho lá minhas dúvidas se existe) e tudo?! Nem Bruno Mezenga do Rei do Gado conseguiu tamanha façanha.

 

2)    Pensa num cidadão que fez quase toda a fortuna por meio de contrabando de diamantes e demais delitos e passou no máximo uma noite na cadeia?! Nem Maria de Fátima de Vale Tudo foi tão “perspicaz”.

 

3)    Pensa num cidadão que só usou preto a vida toda e com isso economizou um guarda roupa arretado?! Nem Perpétua de Tieta teve o figurino tão resumido.

 

4)    Pensa num cidadão que usou uma barba falhada a novela inteira e ainda recebia suspiros apaixonados das fãs de carteirinha além de ditar moda?! Nem Herculano Quintanilha de O Astro capitalizou e influenciou tanto com os pelos faciais.

 

5)    Pensa num cidadão que foi tema de escola de samba e ainda fez com que a modesta Unidos de Santa Tereza subisse para a divisão especial do carnaval carioca?! Nem Giovanni Immbrota de Senhora do Destino foi tão competente.

 

6)    Pensa num cidadão que escapou da morte três vezes, inclusive quando já estava dentro de um caixão no cemitério?! Nem a Raquel de Mulheres de Areia ressuscitou tanto.

 

7)    Pensa num cidadão que pegou a Vanessa Giácomo, Drica Morais, Marjorie Estiano, Lília Cabral e Marina Ruy Barbosa (que vale pelas outras todas juntas) na mesma novela sem ao menos bagunçar o cabelo?! Nem Jorge Tadeu de Pedra sobre Pedra foi tão sedutor.      

 

No mais, findando a novela, o que tenho a solicitar depois de toda essa explanação é:

 

- Comendador José Alfredo para Presidente!   

 

Pede deferimento.

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 12 de março de 2015

sexta-feira, 6 de março de 2015

Nerielson Rodrigues e o Bejo no asfalto


Nerielson Rodrigues e o Bejo no asfalto

 

           

Com os olhos marejados e o peito arfante, Benjamin Pessoa se encontrava naquele instante sobre o parapeito do Eixão no cruzamento com o Eixo Monumental na cidade de Brasília. Ali no ponto nevrálgico do plano piloto. Ele olhou para baixo por diversas vezes se imaginando estirado no asfalto quente da capital. O suor lhe escorria pela testa e instintivamente retirou do bolso interno do paletó, feito sob medida para sua posse, um lenço para estancar o suor teimoso. Notou de relance o monograma bordado à mão no lenço branco. “Bejo”. A alcunha por que era conhecido. Apelido dado pela mãe que não conseguia pronunciar corretamente o nome do filho. Recordou-se do quanto seu nome diferente lhe atrapalhou quando criança. Onde já se viu uma criança que nasce em Umbuzeiro na Paraíba com esse nome estranho. Benjamin. Tudo por conta do Seu Francisco Pessoa. Seu pai. Parente distante do político João Pessoa e orgulhoso de ser conterrâneo do estopim da Revolução de 30, Seu Francisco era fascinado por Getúlio Vargas. O pai dos pobres como sempre dizia. Tinha até retrato do Presidente na sala de jantar da família Pessoa. E o pai sempre olhava para a foto antes de iniciar as refeições. Como se pedisse permissão ou agradecesse pela comida que estava nos pratos da família. Quase um Deus. Quando nasceu seu primogênito, Seu Francisco até pensou em batizar o menino de Getúlio, mas achou petulância muita. Escolheu Benjamin. O nome do irmão de Getúlio. Mal sabia ele que o mesmo Benjamin, o irmão do Presidente, seria um dos pivôs de seu suicídio. Depois do fato, no caso o suicídio, o pai adoecera. Definhara. Perecera. Ele, Benjamin Pessoa, Jurara sob a lápide do pai, ingressar na carreira política e chegar à altura do Presidente morto. O Presidente que havia matado seu pai. E assim ele fez. Vereador, Deputado Estadual, Deputado Federal e agora Senador da República. O cargo mais alto do Poder Legislativo. Mandou fazer terno em São Paulo para a posse. Alinhavado sob medida. Coisa chique. Coisa de Senador. Foi eleito pelo PUT. Partido da União Trabalhista que ele ajudou a fundar. Foi voto vencido na escolha do nome do partido. Achava indecoroso. Mas a democracia é assim mesmo. A maioria manda. Ele mesmo se consolava. Era um partido alinhado com o governo, mas Benjamin era osso duro de roer. Geralmente perdia para a maioria do Partido, mas não omitia suas convicções. Foi então, o PUT, agraciado até com uma Diretoria da Petrobrás. DROGA. Diretoria Regional de Garagens e Alimentação. Indicou um primo da Paraíba que era de carreira do órgão, mas a maioria escolheu um sobrinho do Presidente do Partido. O sobrinho era manobrista e bom de garfo. Tinha experiência com garagens e alimentação comprovada. Ele mesmo se consolava. Depois disso o Partido dera um salto nas campanhas eleitorais. Apareceu dinheiro de todos os lados. Parte desse recurso foi utilizado em sua campanha. Dinheiro limpo dizia o Presidente do PUT. Dinheiro não tem pátria. Ele se consolava. Pois agora sobre o parapeito, Beja não conseguia se consolar. Suava e chorava sob o sol escaldante do Planalto Central. Num átimo de segundo lembrou-se do pai que lhe batizara, da mãe que lhe apelidara e de Getúlio que o encorajara. Se até mesmo ele, o Presidente, fez, porque eu não poderia? Abriu os braços e se jogou para também entrar para História.

 

            Com os olhos marejados e o peito arfante, Nerielson Rodrigues da Silva se encontrava naquele instante trafegando pelo Eixo Monumental no cruzamento com o Eixão na cidade de Brasília. Ali no ponto histórico da cidade. Ele olhou para a antiga Rodoviária e lembrou-se de sua mãe. Não perdia as esperanças de reencontrá-la naquele lugar. Provavelmente ela já estaria morta, mas ele não perdia as esperanças. Isso o alimentava. Ela o deixara sozinho com o pai e cinco irmãos na cidade goiana de Faina. Fugiu com o açougueiro da cidade. A mãe dizia sempre que um dia o faria. Não com o açougueiro. Mas dizia. E Brasília era seu destino. Nutria uma paixão doentia pela cidade. Recortava fotos de revistas e colava em um álbum. Guardava o álbum na parte de cima do armário junto com os livros de Nelson Rodrigues. Tinha todos. Juntava um trocado e comprava. Amava o escritor e sua indecência. Dizia que Brasília era pecaminosa como Nelson. Por conta dessa obsessão quis batizar o filho caçula de Nelson. O marido recusou. Onde já se viu colocar o nome de um pervertido no meu filho? Vamos colocar o nome do avô. Nerielson. A mãe riu por dentro. Concordou com a condição de ser acrescentado o nome Rodrigues no menino. O pai questionou que isso era sobrenome. Ela insistiu. Ele cedeu. Batizaram assim. Um quase homônimo. Como sua mãe escondia os livros de Nelson, Nerielson atiçou por ler. Subia numa cadeira e tirava de cima do armário. Leu todos. Cultivou a mesma paixão da mãe. Mudou-se para Brasília quando o pai morreu. Desgostou de ser trocado pelo açougueiro. Arrendou uma pequena chácara no entorno do Distrito Federal e entrou no ramo de hortifrúti. Virou vegetariano, mas entrava em todos os açougues que via. Às vezes encontrava a mãe em um deles. Ele se consolava. Por conta de um contrato grande de fornecimento de folhas e verduras que fechou com uma tal Diretoria Regional de Garagens e Alimentação da Petrobrás, comprou um caminhãozinho novo. Estava progredindo. Só não entendia a relação que tinha garagem com alimentos e nem o que esse povo fazia com tanto alface e rúcula. Dava quase para alimentar o país inteiro. Devem ser todos vegetarianos. Ele mesmo se consolava. Mas contrato é contrato e Nerielson era cumpridor de seus compromissos. Escritos ou no fio do bigode, apesar dele ser desprovido de pelos faciais. Pois agora estava ele olhando a procura da mãe no tal cruzamento de eixos quando percebeu de soslaio um vulto cair do céu bem na frente de seu caminhão carregado de alface. Deu um golpe na direção e foi catando mamona, como dizem no Faina, até estabacar o veículo no meio da pista. Foi caixa de alface para todo lado. Ainda atordoado com o acidente, tirou o cinto de segurança e correu para ver o que tinha caído e provocado o infortúnio. Assim que se afastou do veículo tombado, alguns passantes logo começaram a carregar as caixas caídas da carga que levava, mas quando viram que se tratava de alface logo desistiram. Se fosse ao menos cerveja! Nerielson foi se aproximando do local da quase colisão pensando que era motorista batuta. Poucos teriam conseguido se desviar daquele jeito. As pessoas já se acumulavam em volta do corpo que parecia de uma figura importante dado as vestimentas grã-finas. Formou-se uma roda em volta, mas ninguém com coragem suficiente para se aproximar. O trânsito já estava um caos completo quando Nerielson conseguiu chegar perto do sujeito caído. O corpo todo desconjuntado demonstrava que havia quebrado muitos ossos. O terno bem cortado e o broche do Senado demonstravam que era gente graúda. O sangue que escorria pelo asfalto quente demonstrava que a vida se esvaia. Foi quando o agonizante homem em seu último lampejo de força pediu que ele se aproximasse. Provavelmente o moribundo queria dizer as últimas palavras. Nerielson se aproximou e por um milésimo de segundo imaginou já conhecer aquela cena de algum livro que tinha lido escondido da mãe. Mas era tarde demais para recuar e enquanto descia o rosto fechou os olhos e se preparou para o beijo. Foi então que Beja lhe sussurrou ao ouvido em seu último ar: “Acho que estou na lista do Janot”. Fechou os olhos e então partiu para o descanso eterno. Ou não.

 

* Os fatos aqui narrados são ficção. Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.          

           

 

           

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 06 de março de 2015