Nerielson Rodrigues e o
Bejo no asfalto
Com os olhos marejados e o peito
arfante, Benjamin Pessoa se encontrava naquele instante sobre o parapeito do Eixão
no cruzamento com o Eixo Monumental na cidade de Brasília. Ali no ponto
nevrálgico do plano piloto. Ele olhou para baixo por diversas vezes se
imaginando estirado no asfalto quente da capital. O suor lhe escorria pela
testa e instintivamente retirou do bolso interno do paletó, feito sob medida
para sua posse, um lenço para estancar o suor teimoso. Notou de relance o
monograma bordado à mão no lenço branco. “Bejo”. A alcunha por que era
conhecido. Apelido dado pela mãe que não conseguia pronunciar corretamente o
nome do filho. Recordou-se do quanto seu nome diferente lhe atrapalhou quando
criança. Onde já se viu uma criança que nasce em Umbuzeiro na Paraíba com esse
nome estranho. Benjamin. Tudo por conta do Seu Francisco Pessoa. Seu pai.
Parente distante do político João Pessoa e orgulhoso de ser conterrâneo do
estopim da Revolução de 30, Seu Francisco era fascinado por Getúlio Vargas. O
pai dos pobres como sempre dizia. Tinha até retrato do Presidente na sala de
jantar da família Pessoa. E o pai sempre olhava para a foto antes de iniciar as
refeições. Como se pedisse permissão ou agradecesse pela comida que estava nos
pratos da família. Quase um Deus. Quando nasceu seu primogênito, Seu Francisco
até pensou em batizar o menino de Getúlio, mas achou petulância muita. Escolheu
Benjamin. O nome do irmão de Getúlio. Mal sabia ele que o mesmo Benjamin, o irmão
do Presidente, seria um dos pivôs de seu suicídio. Depois do fato, no caso o
suicídio, o pai adoecera. Definhara. Perecera. Ele, Benjamin Pessoa, Jurara sob
a lápide do pai, ingressar na carreira política e chegar à altura do Presidente
morto. O Presidente que havia matado seu pai. E assim ele fez. Vereador,
Deputado Estadual, Deputado Federal e agora Senador da República. O cargo mais
alto do Poder Legislativo. Mandou fazer terno em São Paulo para a posse.
Alinhavado sob medida. Coisa chique. Coisa de Senador. Foi eleito pelo PUT.
Partido da União Trabalhista que ele ajudou a fundar. Foi voto vencido na
escolha do nome do partido. Achava indecoroso. Mas a democracia é assim mesmo.
A maioria manda. Ele mesmo se consolava. Era um partido alinhado com o governo,
mas Benjamin era osso duro de roer. Geralmente perdia para a maioria do
Partido, mas não omitia suas convicções. Foi então, o PUT, agraciado até com
uma Diretoria da Petrobrás. DROGA. Diretoria Regional de Garagens e
Alimentação. Indicou um primo da Paraíba que era de carreira do órgão, mas a
maioria escolheu um sobrinho do Presidente do Partido. O sobrinho era
manobrista e bom de garfo. Tinha experiência com garagens e alimentação
comprovada. Ele mesmo se consolava. Depois disso o Partido dera um salto nas
campanhas eleitorais. Apareceu dinheiro de todos os lados. Parte desse recurso
foi utilizado em sua campanha. Dinheiro limpo dizia o Presidente do PUT.
Dinheiro não tem pátria. Ele se consolava. Pois agora sobre o parapeito, Beja
não conseguia se consolar. Suava e chorava sob o sol escaldante do Planalto Central.
Num átimo de segundo lembrou-se do pai que lhe batizara, da mãe que lhe
apelidara e de Getúlio que o encorajara. Se até mesmo ele, o Presidente, fez,
porque eu não poderia? Abriu os braços e se jogou para também entrar para
História.
Com os olhos marejados e o peito
arfante, Nerielson Rodrigues da Silva se encontrava naquele instante trafegando
pelo Eixo Monumental no cruzamento com o Eixão na cidade de Brasília. Ali no
ponto histórico da cidade. Ele olhou para a antiga Rodoviária e lembrou-se de
sua mãe. Não perdia as esperanças de reencontrá-la naquele lugar. Provavelmente
ela já estaria morta, mas ele não perdia as esperanças. Isso o alimentava. Ela
o deixara sozinho com o pai e cinco irmãos na cidade goiana de Faina. Fugiu com
o açougueiro da cidade. A mãe dizia sempre que um dia o faria. Não com o
açougueiro. Mas dizia. E Brasília era seu destino. Nutria uma paixão doentia
pela cidade. Recortava fotos de revistas e colava em um álbum. Guardava o álbum
na parte de cima do armário junto com os livros de Nelson Rodrigues. Tinha
todos. Juntava um trocado e comprava. Amava o escritor e sua indecência. Dizia
que Brasília era pecaminosa como Nelson. Por conta dessa obsessão quis batizar
o filho caçula de Nelson. O marido recusou. Onde já se viu colocar o nome de um
pervertido no meu filho? Vamos colocar o nome do avô. Nerielson. A mãe riu por
dentro. Concordou com a condição de ser acrescentado o nome Rodrigues no
menino. O pai questionou que isso era sobrenome. Ela insistiu. Ele cedeu.
Batizaram assim. Um quase homônimo. Como sua mãe escondia os livros de Nelson,
Nerielson atiçou por ler. Subia numa cadeira e tirava de cima do armário. Leu
todos. Cultivou a mesma paixão da mãe. Mudou-se para Brasília quando o pai
morreu. Desgostou de ser trocado pelo açougueiro. Arrendou uma pequena chácara
no entorno do Distrito Federal e entrou no ramo de hortifrúti. Virou
vegetariano, mas entrava em todos os açougues que via. Às vezes encontrava a
mãe em um deles. Ele se consolava. Por conta de um contrato grande de
fornecimento de folhas e verduras que fechou com uma tal Diretoria Regional de
Garagens e Alimentação da Petrobrás, comprou um caminhãozinho novo. Estava
progredindo. Só não entendia a relação que tinha garagem com alimentos e nem o
que esse povo fazia com tanto alface e rúcula. Dava quase para alimentar o país
inteiro. Devem ser todos vegetarianos. Ele mesmo se consolava. Mas contrato é
contrato e Nerielson era cumpridor de seus compromissos. Escritos ou no fio do
bigode, apesar dele ser desprovido de pelos faciais. Pois agora estava ele
olhando a procura da mãe no tal cruzamento de eixos quando percebeu de soslaio
um vulto cair do céu bem na frente de seu caminhão carregado de alface. Deu um
golpe na direção e foi catando mamona, como dizem no Faina, até estabacar o
veículo no meio da pista. Foi caixa de alface para todo lado. Ainda atordoado
com o acidente, tirou o cinto de segurança e correu para ver o que tinha caído
e provocado o infortúnio. Assim que se afastou do veículo tombado, alguns
passantes logo começaram a carregar as caixas caídas da carga que levava, mas
quando viram que se tratava de alface logo desistiram. Se fosse ao menos
cerveja! Nerielson foi se aproximando do local da quase colisão pensando que era
motorista batuta. Poucos teriam conseguido se desviar daquele jeito. As pessoas
já se acumulavam em volta do corpo que parecia de uma figura importante dado as
vestimentas grã-finas. Formou-se uma roda em volta, mas ninguém com coragem
suficiente para se aproximar. O trânsito já estava um caos completo quando
Nerielson conseguiu chegar perto do sujeito caído. O corpo todo desconjuntado
demonstrava que havia quebrado muitos ossos. O terno bem cortado e o broche do
Senado demonstravam que era gente graúda. O sangue que escorria pelo asfalto
quente demonstrava que a vida se esvaia. Foi quando o agonizante homem em seu
último lampejo de força pediu que ele se aproximasse. Provavelmente o moribundo
queria dizer as últimas palavras. Nerielson se aproximou e por um milésimo de
segundo imaginou já conhecer aquela cena de algum livro que tinha lido
escondido da mãe. Mas era tarde demais para recuar e enquanto descia o rosto
fechou os olhos e se preparou para o beijo. Foi então que Beja lhe sussurrou ao
ouvido em seu último ar: “Acho que estou na lista do Janot”. Fechou os olhos e
então partiu para o descanso eterno. Ou não.
*
Os fatos aqui narrados são ficção. Qualquer semelhança com a vida real é mera
coincidência.
Guilherme Augusto
Santana
Goiânia, sexta feira 06 de março de 2015
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