O
Líder
Numa das muitas cidades do interior do
Brasil, nem capital, nem currutela se passou o fato narrado a seguir. Como em
grande parte do país, inconsolados e revoltados com os recentes escândalos de
corrupção aliados a volta sorrateira e camuflada da inflação, cresceram os
intentos de organizar uma manifestação. Não é porque não somos cidade grande
que não temos o direito e o dever de protestar. Bradou o líder dos produtores
rurais na reunião que se iniciava com as cabeças pensantes do município. Concordo
com o senhor e digo que temos que fazer muito barulho para sermos escutados em
Brasília. Corroborou o chefe da resenha dos funcionários públicos. Seguiu-se
então uma avalanche de apartes, colóquios, observações e opiniões entusiastas
que fariam qualquer patriótico encher os olhos d´água. Terminada assim a
reunião com todos de mãos dadas cantando o hino nacional, marcaram o manifesto
para coincidir com os demais espalhados pelo país. Nesse interim, cada um
corria para um lado. Arruma carro de som, manda fazer bandeiras, panfletagem,
convoca as pessoas, pede donativo para o lanche e demais preparatórios para a
grande manifestação. Não podemos fazer feio diante da nação. Cochichou o
Prefeito ao pé do ouvido do secretário da horta comunitária. A discórdia começaria
aí, pois o chefe do poder executivo municipal, vulgo Seu Zé do Açougue, era de
partido da base do governo federal, portanto podia participar da manifestação
mas de maneira extra oficiosa. Sabe assim por baixo dos panos? Mais ou menos
isso. O pessoal da oposição achou o cavalo arriado na porteira porque poderia
capitalizar politicamente e ainda alfinetar o Prefeito por estar “omisso” à
vontade popular. O pessoal da prefeitura estava dividido. Os que “gostavam” do
Prefeito não sabiam se apoiavam o movimento fingindo não apoiar ou não apoiavam
fingindo apoiar. Já os desafetos do Prefeito, ao contrario, não sabiam se não
apoiavam fingindo apoiar ou apoiavam fingindo não apoiar. E havia aqueles que
preferiam assistir o Caldeirão do Huck que ia dar no mesmo horário. Sei que no
dia do fatídico protesto estava lá metade da população do município que apoiava
o movimento e a outra metade que fingia. Todos juntos esperando o início do
movimento. No carro de som se acotovelavam as autoridades, lideranças e os
papagaios de pirata. Todo mundo querendo capitalizar. Todo mundo não se
entendendo. Decidiram então pedir calma a turba popular que já se formava por
falta do lanche prometido e definir as regras do protesto. Primeiramente
fizeram um toró de ideias (brainstorming) para eleger a motivação. O que vamos
pedir. Seguiu a avalanche. Impeachment da Presidenta. Alguém lembrou quem era o
vice. Melhor não. Tira da pauta. Volta do regime militar. Alguém lembrou o pau
de arara. Gosto não. Tira da pauta. Aumento dos salários dos funcionários do
município. Alguém (no caso o Prefeito) lembrou que não tinha nada a ver com a
contenda. Melhor não. Tira da pauta. Depois de muito põe e tira da pauta,
restaram a paz e o fim da corrupção. Coisa bem objetiva. Escolhido o motivo
partiram para eleger um líder. Senão vira bagunça. Aí que o caldo entornou. O
Prefeito não podia ser porque estava fingindo apoiar e a oposição não
aceitaria. Melhor não colocar nenhum político. Eliminou um tanto. O líder dos
produtores rurais requisitou o cargo mas foi rechaçado por estar respondendo
processo. Deu uns sopapos na mulher. Decidiram então que só podia se candidatar
os fichas limpa. O padre então, com um sorrisinho de canto de boca, avocou o
cargo. Melhor não porque o Estado é laico e os evangélicos não iam gostar nada
disso. Logicamente que Dona Euclidina, professora da escola, teve de explicar
para a maioria o que significava a palavra “laico”. Aproveitando a explicação catedrática,
a professora pensou que seria a melhor opção, mas logo lembraram que ela era
funcionária fantasma da Câmara dos Vereadores e Professora do Estado, o que,
via de regra, não era muito católico. E ficou esse candidata e descandidata por
um tempo. Enquanto isso Seu Antônio Padeiro fez o favor de ceder uns pães à
população que esperava para satisfazer a fome do corpo. Dona Maria Antonieta, proprietária
da pensão, comeu brioche. Depois de muito discutir, resolveram que ninguém
daquele pequeno grupo tinha reputação ilibada suficiente para liderar o
movimento. Resolveram então angariar a liderança no meio da população que
esperava pelo manifesto. Juca Pijama, o locutor da rádio comunitária, foi ao
microfone do carro de som e com tom locutório explicou o intento à população.
Vamos portanto, escolher um líder para nosso movimento. Por favor, fiquem todos
do lado direito do carro de som. Assim obedeceram. Pois vamos começar a
quadrilha... quer dizer a seleção. Por favor, quem tem problemas com a justiça
ou responda processo por delitos por favor se dirija para a esquerda do carro
de som. Roubo de galinha vale? Perguntou Tião Galinha. Qualquer delito.
Precisamos de um líder ficha limpa. Seguindo a ordem um tanto de gente trocou
de lado. Quase metade. Pois continuemos. Quem sonega imposto, tem emprego
fantasma ou emprego arrumado por algum político favor vir para o lado esquerdo
também. Mais um tanto de gente deslocou para o outro lado incluindo a
professora Dona Euclidina. Foi raleando os do lado direito. Então vamos. Quem
estaciona em local proibido, em vaga de idoso só para ir rapidinho na farmácia
e em fila dupla para buscar o filho na escola, por favor à esquerda. Quase
todas as mães se deslocaram. Menos gente ainda foi restando. Agora quem torce
pelo Corinthians favor deixar a passeata. Ouviram-se vaias e o locutor que era
palmeirense desistiu do critério de seleção. Continuemos. Quem possui carteira
de estudante adquirida do Zezinho Mão Leve, faz download de filme não
autorizado e compra DVD pirata favor se juntar a maioria do lado esquerdo. E
nessa ladainha foram todos mudando de lado e restando bem poucas opções para o
desespero de todos. Foi nessa toada até restar uma só viva alma (até porque os
mortos não entraram na escolha por motivos de erro material). Uma senhora.
Estava ali sozinha igual aroeira em lavoura de soja. Tinham achado seu líder.
Melhor ainda que fosse uma mulher porque igualava com o gênero da Presidenta. O
locutor que era míope fez força para enxergar quem era e precisou do Chiquinho Coroinha
soprar ao seu ouvido. É Dona Corru. Corruélia do Espírito Santo era seu nome. Pela
dificuldade de pronúncia tinha ficado a abreviação Corru. Assim era conhecida.
O locutor gritou ao microfone. Dona Corru aceitas ser nossa líder? Nenhuma
manifestação. Repetiu a pergunta. Nada. Foi aí que o mesmo Chiquinho lembrou a
todos que Dona Corru era meio surda. Então vai lá menino perguntar a ela se
aceita o cargo! Chiquinho desceu e travou com a senhora uma batalha de sinais
para explicar a celeuma, visto que Dona Corru tinha ido ao protesto por conta
do lanche que seria servido. Inclusive reclamou que a manteiga servida pelo
Antônio Padeiro estava rançosa. Capaz que ele quis fazer desova de estoque e
por isso ofereceu de graça. Depois do desabafo o menino de recado voltou
correndo ao carro de som para transmitir a resposta da Dona. Olha, aceitar ela
até aceita, mas pediu que se puder assinar a carteira de trabalho só daqui três
meses ela agradece. Esta recebendo o seguro desemprego. Ah e tem outra coisa.
Ela quer colocar a filha como secretária e quer manteiga ao invés de margarina
no seu pão do lanche. Foi um desacoçoamento geral. Um balde de água fria nos
ânimos. Seria realmente Dona Corru a opção? Mas naquela altura do campeonato
não tinham como recuar. O que não tinha remédio, remediado estava.
- Corru é a opção!
A população gritou vivas seguido de
uma salva de foguetes e seguiram com o cortejo... quer dizer com o protesto.
*
Usei as cores do Brasil para pintar a cara e pedir o impeachment do Presidente
Collor e tenho o maior orgulho desse fato. Nada mais democrático que a
manifestação popular. Contra ou a favor de algo ou alguém. Todo movimento
democrático é válido desde que seja isento de violência e intolerância, mas
acredito que o principal movimento de mudança tem que ser o interno. Dentro de
cada cidadão. Quando entendermos o que é realmente cidadania teremos
governantes à nossa altura. Os líderes simplesmente refletem seus liderados.
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 20 de março de
2015
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