sexta-feira, 25 de setembro de 2015

pelos meus, pelos seus, pelos nossos


Pelos meus, pelos seus, pelos nossos

 

           

            Hassan e Omar eram quase irmãos. Só não tinham os laços sanguíneos, mas nasceram no mesmo ano, foram criados juntos e principalmente professavam a mesma fé religiosa. Irmãos de direito. A periferia de Damasco, na Síria, foi o local onde aprenderam os primeiros passos, as primeiras palavras e os primeiros textos do Alcorão. Não podiam dizer que a vida era fácil, pois seu país sempre viveu em guerra. Desde que eles se entendiam como gente. Mas eram felizes com o que tinham e cultivavam um grande orgulho de suas origens e de seu país. Até o dia que apareceu o Estado Islâmico e separou os dois amigos-irmãos. Hassan conseguiu se esconder ajudado por sua família, mas Omar não teve a mesma sorte. Foi levado pelos soldados armados e ficaram mais de ano sem se verem. A família já o considerava morto, mas o amigo cultivava ainda a esperança de se encontrar novamente com Omar. E assim a guerra foi recrudescendo. Cada dia ficava mais difícil a sobrevivência em sua casa. Num ato extremo Hassan decidiu fugir. Traçou os planos, pegou o dinheiro que acumulara em seus anos de trabalho duro e mirou o destino. Alemanha. Lá seria seu porto seguro. Começou assim sua via crucis. Encomendou a travessia até a Turquia e de lá seguiria até o seu destino final. Estava disposto a atravessar a Europa a pé. De joelhos se fosse preciso. Numa noite sem lua entrou no barco que iniciaria sua jornada. De cabeça baixa entoava uma reza para o sucesso da jornada. Lágrimas escorriam ao lembrar-se dos familiares e amigos mortos pela guerra sem propósito. Mais lágrimas ao lembrar-se dos que ficavam no inferno. Aquele inferno que era sua pátria. Seu solo. Lembrou-se de Omar. Chegou a ouvir sua voz sussurrando as mesmas frases do Alcorão. Aquelas que aprenderam juntos. Foi quando tomado pela surpresa olhou para o companheiro que estava ao seu lado no barco e identificou sob a luz pálida da noite seu amigo querido. Irmão. Foi uma comoção sem par. Abraçaram-se e assim permaneceram por alguns minutos sem palavras. Só lágrimas. Um reencontro. Um bom sinal para uma vida nova que pretendiam começar. Omar contou ao amigo os terríveis dias que passou nas mãos dos terroristas. Torturas sem fim. Mas tinha escapado. E como Hassan, estava disposto a esquecer das agruras vividas em seu país e começar nova vida. Juraram ali naquele barco não se separarem mais. Juntariam forças e viveriam felizes. Porém a vida lhes pregaria nova peça. Com o mar revolto o barco não aguentou e virou. Homens ao mar. Foi um desespero total. Gritos e choros quebravam o silêncio da noite. Foi então que os amigos se separam mais uma vez. Hassan conseguiu nadar até a praia turca. Exausto procurou seu irmão. Nada. Passou dois dias naquela praia esperando notícias. Nada. Resolveu seguir caminho. Tinha perdido seu amigo mais uma vez. Mas restava-lhe a esperança. Sempre. Algo lhe dizia que iriam se encontrar de novo. Mais uma vez foi adiante. Andou um sem numero de milhas a pé. Trem. Carona. Chegou. Alemanha. Berlim. Foi acolhido. Uma família alemã lhe deu pouso. Água. Comida. Um banho. Uma esperança. Iniciou nova vida. Arrumou emprego. Trabalhou. Ajudou refugiados que fugiam da guerra como ele. Ganhou uma família. Berta e Claus. Não tinham filhos. Adotaram Hassan. Hassan os adotou. Saia todo dia de manhã para comprar o café da manhã de seus pais adotivos. Ia pensativo pelas ruas frias de Berlim mas sempre com um sorriso no rosto. Alá tinha lhe dado uma nova chance. E ele era imensamente grato por isso. Abriu a porta da mercearia e foi logo cumprimentando o dono. Já era conhecido no bairro. O filho sírio de seu Claus e Dona Berta. Foi quando num átimo de segundo viu Omar sentado numa mesa de canto. Seu coração transbordou de alegria. Parecia não acreditar que o destino tinha lhe presenteado mais uma vez com aquela oportunidade. Andou a passos largos em direção ao amigo. Parou na sua frente e esperou avidamente ser reconhecido. Omar levantou os olhos e olhou diretamente para Hassan. Sem uma palavra proferida levantou-se e foram de encontro um ao outro. Mas dessa vez foi diferente. Omar puxou uma arma e rendeu Hassan colocando-o em posição de refém. Gritou em voz alta palavras que Hassan não conseguiu entender. Não queria entender. De imediato as pessoas que estavam no estabelecimento saíram em disparada. Em segundos estavam os dois sós naquele local. O mesmo que Hassan comprava café todos os dias para seus pais. Ele custou a entender o que estava acontecendo. Não entendia. Ficaram horas em silencio enquanto do lado de fora se formava a aglomeração de pessoas. Polícia. Imprensa. Palanque. Adolf, político ultra direitista já estava a vociferar palavras de ódio aos imigrantes. Aqueles que a Alemanha acolhera com tanto desprendimento e agora envenenavam as entranhas da alma germânica. Quem olhava de fora quase via uma certa figura histórica que havia arrastado o mundo para uma guerra. Gritava em alto em bom som que fazia aquilo pelos seus compatriotas. Pelos seus. Mas Adolf não falou muito tempo sozinho. Logo começaram as contraposições de Ali. Sírio erradicado alemão que tinha uma ONG de direitos humanos de refugiados. Vivia para ajudar compatriotas que buscavam a sobrevivência na Alemanha. Muitas vezes radicalizava o discurso e levava até as últimas vias seus propósitos. Cada palavra gritada pelo extremista de direita era rebatida pelo extremista de esquerda. “Pelos meus compatriotas” falava Ali. Pelos meus. Alheios a toda essa confusão que se formava do lado de fora, Omar e Hassan permaneciam em silencio dentro da mercearia. Só lágrimas. Pareciam não querer entender os motivos um do outro. Foi quando Omar falou ao amigo que Alá o havia enviado para destruir o inimigo. Carregava bombas pregadas ao seu corpo e o detonador estava em sua mão. Esperava a hora que a aglomeração se tornasse mais intensa do lado de fora e sairiam para detonar a bomba e cumprir seu destino. Fazia aquilo por Alá, pelo Estado Islâmico e pelos nossos compatriotas. Pelos nossos. Foi nesse momento que Hassan pode olhar mais atentamente pelo vidro e enxergou seus pais perto do cordão de isolamento feito pela polícia. Berta e Claus olhavam para ele como se quisessem trocar de lugar com o filho. Nesse instante passou um filme por seus olhos. Todos os momentos que vivera até chegar aquele lugar. A vida em Damasco. Seus pais biológicos que morreram por conta da guerra. A travessia até chegar a Alemanha. Os pais que o acolheram com tanto carinho. O reencontro com o amigo-irmão. A vida que lhe sorrira novamente. A vida. Com os olhos marejados a olhar o casal que esperava apreensivo sua libertação, virou-se para Omar e falou que faria aquilo por todos. Pelos meus, pelos seus e pelos nossos. Apertou o detonador na mão do amigo e os dois morreram ali sozinhos naquela manha fria de Berlim. Sozinhos.             

 

 

* essa é uma estória de ficção

 

    

   

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 25 de setembro de 2015

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

cozinhando com o Coveiro 4 - carneiro e pimenta em Vienna


Cozinhando com o Coveiro 4 – carneiro e pimenta em Vienna

 

           

Um dos grandes baratos da culinária é misturar coisas que aparentemente não tem tradição de estarem juntas. Calma que não cometerei heresias gastronômicas. Nada perto de misturar leite com manga como profetizaram as mães ao longo dos séculos. Então antes que sejamos excomungados por nossas genitoras não delonguemos muito o papo e principiemos nossa receita:

 

            Ache uma banda de costela de carneiro. Como achar? Se vira! Toda cidade tem uma feira que tem um cidadão que vende carneiro. Ah você não gosta de carneiro? Desculpe mas nesse caso terá que esperar a próxima receita. Pois pegue essa costela e tempere. Faz assim. Bata tudo no mix de alimentos: cebola, alho (bastante), sal, pimenta do reino em grãos, sálvia, hortelã, alecrim, salsa e azeite. Essa rica pasta de temperos vai até uma vasilha média e recebe uma garrafa de vinho branco seco. Pelo amor de Deus não me vá colocar vinho doce! Nunca! O vinho além de servir como veículo dos temperos, ainda dá um toque de acidez necessário ao prato. Se a sua costela estiver com muita gordura ou aquele cheirinho de ranço comum à carne de carneiro, pode dar uma lavada na mesma com limão ou vinagre. Só tome cuidado para não cozinhar a carne. Pois bem. Deposite a costela em uma forma que já possa ir ao forno. Regue com o tempero que preparou acima. Lembre-se de regar em todos os cantos. Cubra a forma com um papel filme e leve a geladeira, pois você só irá assar essa costela no outro dia. Ah você queria fazer hoje? Então carregue um pouquinho mais no sal e reze para pegar o tempero. Para os que foram previdentes e fizeram o planejamento antecipado da marinada, no dia seguinte retire o papel filme da forma (nunca coloque nada no forno com papel filme tá?), retire um pouco do tempero para regar mais tarde e coloque papel alumínio para simular um forno. Esse processo faz o cozimento da carne. Leve ao fogo médio (250º) por aproximadamente uma hora e meia. Depois desse tempo decorrido verifique se a carne está cozida e retire o papel alumínio para terminar de assar. Nesse processo de transição de mais uma regada com o molho que restou no fundo da forma e com o que retirou antes de começar o processo de cocção. Recoloque a costela no forno e espere por mais uma hora. Aí vem a pergunta que não quer calar: Qual o acompanhamento? Aha! Agora que vem a questão levantada no início do texto. Presta atenção na prosopopeia. Pegue cebola. Muita cebola. Corte-as em fatias finas no sentido longitudinal. Depois lance mão de pimenta dedo de moça. Quantidade boa. Corte-as do mesmo modo que fez com a cebola. Ah, tire as sementes da pimenta. Isso dará o picante na medida certa (ou não). Reserve. Numa frigideira de fundo grosso (as de fundo fino queimam a farinha) coloque uma porção exagerada de manteiga de leite (nunca use margarina!). Mas uma porção que faria inveja a um cozinheiro francês. Coloque um fio de azeite para não queimar a manteiga e coloque as cebolas. Abaixe o fogo e tenha paciência. As cebolas vão dourar até quase queimar. Mexa sempre. Quando estiverem bem douradas as cebolas adicione a pimenta. Deixe por um tempo para se misturarem os sabores. Aí acrescente farinha de mandioca. Aquela que sua mãe trouxe de alguma cidade do interior que é famosa fabricante de farinha. Afinal você merece produtos de qualidade. Misture bem e deixe a farinha cozinhar. Acerte o sal. Dois cuidados que temos que ter nesse momento. 1) Sempre que colocar sal experimentar para não passar e 2) assim que finalizado retirar da panela para não queimar a farofa. Pronta? Pois bem. O carneiro também deve estar. Use o dourador do forno para dar a cor charmosa em nossa costela e monte o prato. Nesse momento entra outra pergunta que não quer calar: Com qual bebida harmonizaremos? Eu respondo sem pestanejar. Cerveja Lion Fish Vienna Lager. O amargor moderado dessa cerveja penetra na gordura do carneiro suavizando e casando com os temperos. E a carbonatação densa e pesada suaviza o picante da farofa de pimenta. Deixa-me falar uma coisa... melhor não. Experimentem a combinação e depois me contem. Se não gostarem eu mudo de nome.       

 

 

ps. Onde achar a Lion Fish Vienna Lager?  www.reinodomalte.com.br    

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 18 de setembro de 2015


 

 

 

 

Quer ver a cara da costela de carneiro e farofa apimentada harmonizando com a Lion Fish Vienna Lager?

 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

veja bem


Veja bem

           

           

Veja bem. Vamos lá. Devido ao grande fluxo de reclamações em relação à situação atual do país, nós fomos convidados a participar com a solução. Faz de conta que assumimos o papel de juiz supremo. Toda decisão depende de nós. Tipo Todo Poderoso. Prontos para o exercício? Primeiramente vamos destituir a Presidenta. Ela anda muito esquecida, teimosa e condescendente com a corrupção (para não dizer participante). E ainda tem os discursos catastróficos e as frases de efeito negativo. Nosso ouvido não é penico. No lugar dela assume o Vice do PMDB. Que não é unanimidade nem dentro do próprio partido. Além de que se pensarmos bem, o PT, saindo da cadeira de Presidente passa a fazer jogo duro. E isso o PT sabe fazer como ninguém. Pensem na governabilidade. PMDB que não une em torno do Vice e o PT em debandada geral. Não funciona. Passemos a cadeira para o próximo na linha sucessória. Presidente da Câmara. Acusado de corrupção. Quase um déspota (as vezes usarei eufemismos para não fazer juízo de valor e tentar não polemizar). Presente na lista dos dez mais odiados do país. Melhor não. Anda a fila. O próximo a assumir a cadeira seria o Presidente do STF. Sabem quem é né? Pois é. Alguém o quer? Não né. Então quem é o próximo? Nova eleição? Intervenção militar? Melhor não. Vamos deixar a Presidenta na cadeira e tentar achar uma outra solução. Pois bem o país precisa resolver a questão do déficit. Leia-se arrecadar mais que gastar. Partimos pelo mais difícil. Cortar gastos. Vamos cortar o número de Ministérios ao meio e mandar metade dos comissionados para o olho da rua. Nesse caso perderemos o apoio de todos os partidos da base. Além de que se fizermos as contas isso não refresca muito o rombo. O grosso do gasto público está em investimentos, previdência, programas sociais, educação e saúde. Sendo que esses dois últimos são verbas carimbadas. Então deixemos de lado e partamos para os outros. Cortaremos os gastos da previdência e programas sociais. Então seremos conhecidos como carrascos dos pobres e desafortunados, além de usurpadores de velhinhos aposentados. Seremos enforcados em praça pública. Melhor não. Então cortemos investimentos. Nesse caso o país para de vez. Sem infraestrutura, sem produção, sem exportação, sem empregos, sem vendas, sem recolhimento de impostos. Menos faturamento maior déficit. Não resolve. Opa! Aumentar a base de tributação! Precisamos incentivar o consumo. Carros, linha branca e construção civil. Linha de crédito e juros baixos. O povo consome muito e a indústria vende muito e nós arrecadamos muito imposto. Mas como não temos investimento em infra e formação de pessoal as indústrias não conseguem produzir o suficiente. Muita gente para comprar com poucos produtos a disposição. O que acontece? Inflação. Melhor não. Então vamos aumentar os impostos! Pronto! Solução simplista e rápida. Igual na época de Tiradentes. Derrama. Se bem que nossa carga tributária está bem superior ao quinto instituído pelo Rei de Portugal. Aumenta os impostos aumenta o que? Sonegação. Aumenta o que? Informalidade. Diminui o que? Arrecadação. Vixe. E agora? E agora que entra o cerne da questão. Veja bem. Não existe solução única, simplista e mágica. Ao invés de querermos todos dar pitaco em assuntos que muitas vezes não dominamos, façamos a nossa parte. A decisão depende só de nós. Consciência política para colocar as pessoas certas para nos governar. Cobrança veemente em cima dos nossos representantes. Trabalhar e produzir riquezas. Formar cidadania nas gerações futuras. Simples? Não. Extremamente complexo. Mas ou é isso ou vamos de Raul:

 

A solução pro nosso povo eu vou dá

Negócio bom assim ninguém nunca viu

Tá tudo pronto aqui é só vim pegar

A solução é alugar o Brasil!...”         

 

 

        

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, 11/09/15

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

sobre pais e filhos


Sobre pais e filhos

 

           

            Berk Hazan estava se arrumando para trabalhar naquela manhã de setembro. Mais uma em sua vida. O sol ainda demoraria mais de hora para nascer, mas ele já estava de pé. Impávido como uma rocha. Personificava o nome dado pela mãe. Berk que em turco significava forte. Firme. Sólido. Ele era assim. Em todas as questões. Desde a criação do filho, Aaran, até no trato com os negócios. E como bom turco que era, fazia muitos negócios. Tinha uma fama de negociador duro na cidade onde morava. Kusadasi. Além disso, tinha na profissão mais um motivo para ser uma rocha de integridade. Era policial. A lei e a ordem em primeiro lugar. Acordava de madrugada todos os dias porque fazia viagem de quase duas horas entre sua cidade e o balneário de Bodrum onde trabalhava. Desde que começara o levante migratório do oriente médio para a Europa que ele não tinha mais sossego. O balneário paradisíaco se tornara entreposto de imigrantes buscando a sobrevivência no continente mais rico. E a confusão estava formada. Ele como a maioria dos turcos estava acostumado com essa passagem pelo país. A Turquia sempre fora rota de tudo quanto é coisa no mundo. Passagem obrigatória do oriente para o ocidente. Mas dessa vez a coisa estava se tornando mais séria. Mas ele não se preocupava muito. Fazia seu trabalho. Colocava o dinheiro em casa. Sustentava a família como um provedor honrado. E pensando assim deu uma olhada no filho ainda na cama antes de sair de casa. Chegou a escutar um soluço da criança advindo do choro intenso na noite anterior. Ele havia colocado o filho de castigo. Não tolerava desobediência. A mulher intervira em favor do pequeno alegando que se tratava de coisa de criança. Mas ele não remediava. Era firme. Castigo necessário. E o filho chorou até adormecer. E assim restava aquele soluço involuntário enquanto a porta se fechava na saída do policial em busca de seu serviço. Havia pensado em dar um afago na criança mas se deteve. Saiu. Sem palavras. Atravessando o mercado para pegar a condução que o levaria a Bodrum, viu seu pai que já montava a barraca que vendia temperos. Seu Ali fazia isso há 50 anos. Herdara o comércio do pai. Berk não queria herdar o ofício do pai. Resolveu ser policial apesar do talento para os negócios. Mas seu Ali não concordara hora nenhuma. “Filho meu tem que ser do comércio”. Ele dizia. “Foi assim desde o avô do meu avô”. Emendava. E por conta dessa desavença Seu Ali e Berk não se falavam há três anos. Desde que Aaran nascera. Muito por conta da firmeza de Berk. “Se não respeita minha decisão não podemos conviver”. Disse ele em sua última conversa com o pai. E desde então assim foi feito. O avô nunca havia colocado o neto nos braços. Ficava por vezes a espiar a família do filho passando pelo comércio com vontade imensa de fazer agrados ao neto, mas era impedido pela frieza e impavidez do filho. “Mas seja como Alá quer”. Dizia ele. Naquela manhã enquanto montava sua barraca no mercado Seu Ali viu o filho ir em direção ao trabalho. O coração apertou. Quis ir até Berk, mas se deteve. O filho nem levantou o olhar. Passou. Sem palavras. A viagem de duas horas era cansativa. Extenuante. Estrada ruim. Chegava sempre irritado. Mas tinha que cumprir sua função. Colocou a farda como era de costume e partiu para a ronda. Muitos turistas e gente de dinheiro. Hotéis grandiosos com espreguiçadeiras na beira do mar. Cada um cuidando da sua vida. Ele pensava na sua quando avistou de longe uma criança deitada de bruços na beira da água. Ela vestia um short azul e camisa vermelha. Parecido com as vestimentas de seu filho que deixara a soluçar em casa. Por um momento bateu-lhe um desespero. Só conseguia ver Aaran deitado na areia. Correu a socorrer. A criança que parecia seu filho. Se chegasse a tempo ainda poderia reanima-lo. Até se aproximar um filme foi passando por sua mente. Seu pai. Seu filho. A corrida na areia era ingrata. Dura. Como ele. Agora estava ali. Parado diante daquele que parecia seu filho. Ficou por alguns segundos parado. Estático. Uma rocha. Petrificado. Sem palavras. Buscava sinais de vida na criança. Mas não conseguia se aproximar. Tinha medo de virar o rosto da criança e ver Aaran. Tinha medo. Outro colega policial se aproximou. Questionou o fato de estar parado ali há alguns minutos. Berk desmoronou. Enquanto pegava a criança sem vida em seu colo uma lágrima desceu-lhe o rosto. A rocha desmoronava. Sentia o peso de carregar o filho morto nos braços. Naquele momento além da lágrima só conseguia sussurrar uma prece que seu pai lhe ensinara ainda criança. Rezou até a hora de voltar para casa. Não conseguia deixar de repetir as palavras como se a prece pudesse apagar aquela cena que não saia de sua mente. Foi assim até chegar a sua cidade. Anestesiado. Abrindo a porta de casa viu Aaran e seu coração transbordou. Assim como seus olhos. Pegou o menino num forte abraço e o colocou no colo como tinha feito com aquela criança na praia. Saiu num rompante até o mercado e parou diante de seu pai. Sem palavras entregou o neto ao avô. Sem palavras se abraçaram. Sem palavras se perdoaram. Sem palavras.      

 

 

* os fatos narrados acima são fictícios

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 04 de setembro de 2015