Sobre pais e filhos
Berk
Hazan estava se arrumando para trabalhar naquela manhã de setembro. Mais uma em
sua vida. O sol ainda demoraria mais de hora para nascer, mas ele já estava de
pé. Impávido como uma rocha. Personificava o nome dado pela mãe. Berk que em
turco significava forte. Firme. Sólido. Ele era assim. Em todas as questões.
Desde a criação do filho, Aaran, até no trato com os negócios. E como bom turco
que era, fazia muitos negócios. Tinha uma fama de negociador duro na cidade
onde morava. Kusadasi. Além disso, tinha na profissão mais um motivo para ser
uma rocha de integridade. Era policial. A lei e a ordem em primeiro lugar.
Acordava de madrugada todos os dias porque fazia viagem de quase duas horas
entre sua cidade e o balneário de Bodrum onde trabalhava. Desde que começara o
levante migratório do oriente médio para a Europa que ele não tinha mais
sossego. O balneário paradisíaco se tornara entreposto de imigrantes buscando a
sobrevivência no continente mais rico. E a confusão estava formada. Ele como a
maioria dos turcos estava acostumado com essa passagem pelo país. A Turquia
sempre fora rota de tudo quanto é coisa no mundo. Passagem obrigatória do
oriente para o ocidente. Mas dessa vez a coisa estava se tornando mais séria.
Mas ele não se preocupava muito. Fazia seu trabalho. Colocava o dinheiro em
casa. Sustentava a família como um provedor honrado. E pensando assim deu uma
olhada no filho ainda na cama antes de sair de casa. Chegou a escutar um soluço
da criança advindo do choro intenso na noite anterior. Ele havia colocado o
filho de castigo. Não tolerava desobediência. A mulher intervira em favor do
pequeno alegando que se tratava de coisa de criança. Mas ele não remediava. Era
firme. Castigo necessário. E o filho chorou até adormecer. E assim restava
aquele soluço involuntário enquanto a porta se fechava na saída do policial em
busca de seu serviço. Havia pensado em dar um afago na criança mas se deteve.
Saiu. Sem palavras. Atravessando o mercado para pegar a condução que o levaria
a Bodrum, viu seu pai que já montava a barraca que vendia temperos. Seu Ali
fazia isso há 50 anos. Herdara o comércio do pai. Berk não queria herdar o
ofício do pai. Resolveu ser policial apesar do talento para os negócios. Mas
seu Ali não concordara hora nenhuma. “Filho meu tem que ser do comércio”. Ele
dizia. “Foi assim desde o avô do meu avô”. Emendava. E por conta dessa
desavença Seu Ali e Berk não se falavam há três anos. Desde que Aaran nascera.
Muito por conta da firmeza de Berk. “Se não respeita minha decisão não podemos
conviver”. Disse ele em sua última conversa com o pai. E desde então assim foi
feito. O avô nunca havia colocado o neto nos braços. Ficava por vezes a espiar
a família do filho passando pelo comércio com vontade imensa de fazer agrados
ao neto, mas era impedido pela frieza e impavidez do filho. “Mas seja como Alá
quer”. Dizia ele. Naquela manhã enquanto montava sua barraca no mercado Seu Ali
viu o filho ir em direção ao trabalho. O coração apertou. Quis ir até Berk, mas
se deteve. O filho nem levantou o olhar. Passou. Sem palavras. A viagem de duas
horas era cansativa. Extenuante. Estrada ruim. Chegava sempre irritado. Mas
tinha que cumprir sua função. Colocou a farda como era de costume e partiu para
a ronda. Muitos turistas e gente de dinheiro. Hotéis grandiosos com espreguiçadeiras
na beira do mar. Cada um cuidando da sua vida. Ele pensava na sua quando
avistou de longe uma criança deitada de bruços na beira da água. Ela vestia um
short azul e camisa vermelha. Parecido com as vestimentas de seu filho que
deixara a soluçar em casa. Por um momento bateu-lhe um desespero. Só conseguia
ver Aaran deitado na areia. Correu a socorrer. A criança que parecia seu filho.
Se chegasse a tempo ainda poderia reanima-lo. Até se aproximar um filme foi
passando por sua mente. Seu pai. Seu filho. A corrida na areia era ingrata.
Dura. Como ele. Agora estava ali. Parado diante daquele que parecia seu filho.
Ficou por alguns segundos parado. Estático. Uma rocha. Petrificado. Sem
palavras. Buscava sinais de vida na criança. Mas não conseguia se aproximar.
Tinha medo de virar o rosto da criança e ver Aaran. Tinha medo. Outro colega
policial se aproximou. Questionou o fato de estar parado ali há alguns minutos.
Berk desmoronou. Enquanto pegava a criança sem vida em seu colo uma lágrima
desceu-lhe o rosto. A rocha desmoronava. Sentia o peso de carregar o filho
morto nos braços. Naquele momento além da lágrima só conseguia sussurrar uma
prece que seu pai lhe ensinara ainda criança. Rezou até a hora de voltar para
casa. Não conseguia deixar de repetir as palavras como se a prece pudesse
apagar aquela cena que não saia de sua mente. Foi assim até chegar a sua
cidade. Anestesiado. Abrindo a porta de casa viu Aaran e seu coração
transbordou. Assim como seus olhos. Pegou o menino num forte abraço e o colocou
no colo como tinha feito com aquela criança na praia. Saiu num rompante até o
mercado e parou diante de seu pai. Sem palavras entregou o neto ao avô. Sem
palavras se abraçaram. Sem palavras se perdoaram. Sem palavras.
* os fatos narrados
acima são fictícios
Guilherme Augusto
Santana
Goiânia, sexta feira 04 de setembro de 2015
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