sexta-feira, 16 de outubro de 2015

a arte de envelhecer


A arte de envelhecer

 

            Ontem estávamos comemorando o aniversário de mamãe (como ela gosta de ser chamada) quando me detive a observar minha avó de 87 anos iniciando sua segunda caneca de chopp. Bebia como se aquela fosse a primeira de sua vida. Com uma boca boa. Lembrei-me de Miele que havia nos deixado há poucos dias. Muitos agora poderão se perguntar qual a relação entre minha avó e o Miele e eu me proponho a respondê-la de imediato. Nenhuma e muitas. A relação, na verdade, existe somente na mente do escritor que se esforça para compreender um pouco mais do sentido da vida. Mas do que estamos falando? Da arte de envelhecer.

           

Só fui entender quem foi a figura Luís Carlos Miele quando assisti a um musical sobre a vida da cantora Elis Regina em São Paulo uns tempos atrás. Vi a carreira de uma pessoa fora da curva, no caso de Elis, ser descoberta e alavancada por uma figura que dominava o meio cultural brasileiro nas décadas de 50 e 60. Não só a carreira da pimentinha, mas também a de artistas como Roberto Carlos, Alcione, Wilson Simonal, Sérgio Mendes, Milton Nascimento, Agnaldo Timóteo entre outros. Tudo isso numa classe fora do comum. Foi produtor, ator, escritor, apresentador e diretor de teatro, cinema, televisão e espetáculos. Hensga! Um currículo invejável. Até assistir o espetáculo sobre Elis tinha na figura de Miele um senhor muito do safado que apresentava um programa de top less, em pleno horário nobre da televisão brasileira, nos anos 90. Não que eu não gostasse, mas o tinha na mesma conta do Peréio. Um arremedo de bon vivant decadente. Estava enganado. Sua produção cultural foi invejável e continuou até o fim. Não com o glamour que o cercou nos tempos idos, mas com a maturidade que seus mais de 70 anos lhe conferiram. Soube alavancar os artistas e se alavancar. Pareceu entender o papel de coadjuvante que ajuda no sucesso geral. Soube envelhecer com classe.

           

Minha avó, mais conhecida como Dona Fia, ficou viúva muito cedo. Nem por isso terceirizou as rédeas da família. Nunca de maneira matriarcal italiana com pulso firme e tom elevado. Sempre ficou nos bastidores. Observando o que se passava em torno dos filhos, genros, noras, netos e bisnetos. De vez em quando conversava com um pontuando algo que ela entendia ser o essencial. Outras vezes mostrava sua discordância sem alterar o semblante. Eram conselhos de vovó. Nunca a vi alterando a voz. Nunca precisou. A família sempre se fechou em torno dela. O argumento era para cuida-la, mas no fundo ela que sempre cuidou da família. Curtiu as viagens as praias com todas as confusões provocadas pela aglomeração de pessoas. Foi a Disney e andou de montanha russa no carrinho da frente para agradar os netos. Mora sozinha, borda à perfeição e cuida de suas plantas com mãos de fada. Ontem quando a vi iniciar sua segunda caneca de chopp e lembrei-me de Miele, senti uma sensação diferente. Senti que ela observava a todos na mesa como se desse a benção para aquela balburdia familiar, mas também senti que envelhecia. Passava mais ainda aos bastidores. Assumia o papel de coadjuvante. Agora realmente precisava ser cuidada. Mas mostrava ali a todos que quisessem ver a sua arte. Suprema. Coisa que poucos dominam. A arte de envelhecer com classe.         

   

             

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 16 de outubro de 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário