A
arte de envelhecer
Ontem
estávamos comemorando o aniversário de mamãe (como ela gosta de ser chamada) quando
me detive a observar minha avó de 87 anos iniciando sua segunda caneca de chopp.
Bebia como se aquela fosse a primeira de sua vida. Com uma boca boa. Lembrei-me
de Miele que havia nos deixado há poucos dias. Muitos agora poderão se
perguntar qual a relação entre minha avó e o Miele e eu me proponho a
respondê-la de imediato. Nenhuma e muitas. A relação, na verdade, existe
somente na mente do escritor que se esforça para compreender um pouco mais do
sentido da vida. Mas do que estamos falando? Da arte de envelhecer.
Só fui entender quem foi a
figura Luís Carlos Miele quando assisti a um musical sobre a vida da cantora
Elis Regina em São Paulo uns tempos atrás. Vi a carreira de uma pessoa fora da
curva, no caso de Elis, ser descoberta e alavancada por uma figura que dominava
o meio cultural brasileiro nas décadas de 50 e 60. Não só a carreira da
pimentinha, mas também a de artistas como Roberto Carlos, Alcione, Wilson
Simonal, Sérgio Mendes, Milton Nascimento, Agnaldo Timóteo entre outros. Tudo
isso numa classe fora do comum. Foi produtor, ator, escritor, apresentador e
diretor de teatro, cinema, televisão e espetáculos. Hensga! Um currículo
invejável. Até assistir o espetáculo sobre Elis tinha na figura de Miele um
senhor muito do safado que apresentava um programa de top less, em pleno horário
nobre da televisão brasileira, nos anos 90. Não que eu não gostasse, mas o
tinha na mesma conta do Peréio. Um arremedo de bon vivant decadente. Estava enganado. Sua produção cultural foi
invejável e continuou até o fim. Não com o glamour que o cercou nos tempos idos,
mas com a maturidade que seus mais de 70 anos lhe conferiram. Soube alavancar
os artistas e se alavancar. Pareceu entender o papel de coadjuvante que ajuda
no sucesso geral. Soube envelhecer com classe.
Minha avó, mais conhecida
como Dona Fia, ficou viúva muito cedo. Nem por isso terceirizou as rédeas da
família. Nunca de maneira matriarcal italiana com pulso firme e tom elevado.
Sempre ficou nos bastidores. Observando o que se passava em torno dos filhos,
genros, noras, netos e bisnetos. De vez em quando conversava com um pontuando
algo que ela entendia ser o essencial. Outras vezes mostrava sua discordância sem
alterar o semblante. Eram conselhos de vovó. Nunca a vi alterando a voz. Nunca
precisou. A família sempre se fechou em torno dela. O argumento era para
cuida-la, mas no fundo ela que sempre cuidou da família. Curtiu as viagens as
praias com todas as confusões provocadas pela aglomeração de pessoas. Foi a
Disney e andou de montanha russa no carrinho da frente para agradar os netos.
Mora sozinha, borda à perfeição e cuida de suas plantas com mãos de fada. Ontem
quando a vi iniciar sua segunda caneca de chopp e lembrei-me de Miele, senti
uma sensação diferente. Senti que ela observava a todos na mesa como se desse a
benção para aquela balburdia familiar, mas também senti que envelhecia. Passava
mais ainda aos bastidores. Assumia o papel de coadjuvante. Agora realmente
precisava ser cuidada. Mas mostrava ali a todos que quisessem ver a sua arte.
Suprema. Coisa que poucos dominam. A arte de envelhecer com classe.
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 16 de outubro de
2015
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