O mar e o sertão
Dona
Sá vivia naquela casa desde que o marido tinha conseguido emprego em uma
mineradora em idos passados. Antes viviam no interior do Mato Grosso e
trabalhavam o campeio do gado de corte. Marcos era o nome do afortunado que tinha
levado Sabina ao altar. Depois de muito tempo virou Dona Sá. Dona Sá do Marcos.
Desde que mudaram para Minas Gerais a vida tinha se tornado mais tranquila.
Nada de perder o marido para as intermináveis comitivas que transportavam gado
para o abate ou para fugir das cheias do pantanal. Ali no interior das Minas
parecia que o tempo tinha parado. Tiveram seus filhos. Quatro. Tiveram seus
netos. Quatro. Tiveram felicidade. Mas o infortúnio um dia se abateu sobre o
casal. Na verdade se abateu sobre Seu Marcos. Um ferimento no pé provocado por
ferramenta de trabalho foi infeccionando e como era do feitio do homem bruto,
não reclamado a tempo. Foi tomando conta e a fatalidade veio a levar o marido
de Dona Sá para os braços do Senhor. Ficou Sá sem Marcos. Com o desgosto
provocado pela perda do pai cada filho foi tomando um rumo. Alguns foram para a
capital em busca de melhores oportunidades e uma não se sabia o paradeiro.
Fugira de casa. A mais nova. Sempre tida pelo pai como desajustada. Deixou para
a avó um presente. Mariana. Neta que a filha abandonara antes da fuga. Era o
xodó de Dona Sá. Muito insistiram os filhos para que a mãe fosse morar com um
deles na capital mas Dona Sá alentava o desejo de continuar vivendo no vilarejo
em que fora tão feliz com seu homem. Conformaram-se os filhos e ficaram avó e
neta a formarem uma família. Uma para a outra. Depois da morte do marido Dona
Sá adquiriu um problema nas pernas que a levou a precisar de cadeira de rodas.
Nunca diagnosticaram direito o que era. Muitos atestaram que poderia ser
desgosto. Mas vida que segue. Seguia até que um dia estava Mariana a brincar no
seu quarto com a boneca de pano feita pela avó quando da janela gritou Dona Sá.
Correu em direção da avó mais que depressa. Sabina estava na janela observando
o mar de lama que se avolumava em direção a sua casa. Estava petrificada. Sem
reação. Sua moradia, pela antiguidade era uma das primeiras da vila e quase isolada
do restante. Por um momento pensou em correr mas imaginou a cena de uma velha
em cadeira de rodas e uma criança de 5 anos a fugir de uma onda avassaladora.
Desistiu. Preferiu deixar o destino cumprir seu feitio. Chamou a neta e tentou
disfarçar para não provocar medo na pequena. Lembrou-se do único filme que
tinha assistido na capital ainda em companhia do marido. “A vida é bela”.
Lembrou-se do pai que fizera de tudo para salvar o filho do holocausto. Decidiu
fazer o mesmo com a neta. Inventou uma estória. Imaginação. “Mariana você não
acredita no que está acontecendo?! Seu sonho vai se realizar!”. A neta
acalentava uma vontade de conhecer o mar e a avó dizia que um dia a levaria
para experimentar a água salgada. Também Dona Sá não conhecia o mar. Também
acalentava o desejo de fazê-lo. Sem pensar muito sentou a criança no colo e
disse que se as duas não podiam ir até o mar, que o mar tinha vindo até elas.
Mariana num entusiasmo infantil correu até o quarto. Sem que a avó tivesse
reação ela disse que iria buscar a boneca de pano. Também a boneca tinha desejo
de conhecer o mar. Chegou com a boneca nos braços e abancou-se no colo da avó.
Dona Sá conseguiu ainda ver escrito no vestido branco da pequena boneca o nome
da neta escrito de caneta azul. Mariana. E ficaram as duas, com lágrimas nos
olhos, a observar pela janela aquele sertão, que por ora, virava mar.
Juliana
estava a observar como sempre fazia quando os afazeres da escola deixavam. Fazia
o quarto ano e era boa aluna. Observava o mar e toda aquela lama que descia de
não sei onde. O professor da escola tinha explicado para a turma sobre o
acidente ambiental e tudo mais mas ela não conseguia se conformar com toda
aquela terra transformando o seu lindo mar. Seu mar. Participou até da campanha
de doação para os desabrigados que sofreram com o mar de lama entregando
bonecas que não usava mais para diminuir o sofrimento das crianças, mas no
fundo tinha mais dó daquele desastre ecológico. Não que não se preocupasse com
as pessoas, mas o mar era sua vida. Tinha tempo que acalentava o sonho de fazer
oceanografia e cuidar da vida marinha. Sempre teve fascínio pelas ondas e pela
maresia. Por isso com frequência era vista coletando conchas na orla de onde
morava no Espírito Santo. Não era diferente naquela manhã nublada de sábado. Só
era diferente a cor da água que teimava em permanecer turva. Vermelha como a
terra do sertão. E foi nessa inspeção matinal de conchas que encontrou uma
boneca semienterrada. Estava só com a cabeça para fora. Retirou-a da areia e
levou até o mar para lava-la. Estava encardida de lama mas conseguiu ler escrito
em seu vestido agora marrom. Mariana. Achou aquilo de uma coincidência
incrível. Tinha enviado bonecas para as crianças vítimas do desastre e tinha
recebido outro em troca. Como se o destino a agradecesse pelo ato de bondade. Tomada
por uma alegria imensa abraçou a boneca. Ficou ali alguns minutos contemplando
aquela sobrevivente que vinha de não sei onde. Decidiu que a adotaria. E como
primeira lição de mãe quis lhe mostrar o mar. “olha mariana, esse é o mar.
Aposto que nunca você viu coisa mais linda”. E ficaram as duas por longo tempo
a observar, com lágrimas nos olhos, aquele mar, que por ora, virava sertão.
* essa é uma estória de
ficção
Guilherme Augusto
Santana
Goiânia, sexta feira 13 de novembro de 2015
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