sexta-feira, 25 de novembro de 2016

chumbo trocado


Chumbo trocado

 

          Zé Meia Frase era matador. Aposentado. Já tinha juntado o suficiente do ofício para viver uma vida tranquila. Merecia descanso. A alcunha tinha lhe pregado por sua economia com o vocabulário. Duas ou três palavras antes de executar o encomendado da vez. Nunca terminava a frase. O cidadão não sabia nem do que tinha morrido. Nunca também fez serviço em ninguém que não merecesse. Estudava o passado do cidadão antes de aceitar o serviço. Era questão de honra. Dizia sempre: “não pego ninguém sem precisão”. Curto e grosso. Largado da agitação da pólvora vivia seus dias a picar fumo e cuidar da família. Tranquilo. Até que um dia cruzou em seu caminho um doutor da lei.

          Hermógenes de Andrada era promotor. Novo no ofício. Filho de família tradicional da capital. Herdara do pai juiz o nome e a fama de implacável. Em sua primeira lotação no interior agarrava-se a lei como uma tábua de salvação. Bom senso era uma palavra que não existia em seu dicionário. Abarrotava a mesa do juiz da comarca com ações e mais ações. Metia o bedelho em tudo. Era amado por parte da população que recorria a ele em caso de precisão e odiado pela outra parte que sofria com os cravos de sua espora. Culpados ou inocentes. Para ele isso era desvio padrão. Dizia sempre: “Não é nada pessoal. É somente o meu ofício”. Sempre com um sorriso no rosto. Surfava na onda da sua ascensão. Altivo. Até que um dia cruzou em seu caminho um matador aposentado.

          Costelinha era um pulguento que vivia na praça da matriz. Ficava ali sempre tentando angariar uma sobra de comida. Cara de cachorro pidão. Fazia parte da população da cidade. Faltava só a placa de patrimônio público. Um dia costelinha anoiteceu e não amanheceu. Esticou as canelas. Logo que descoberto começaram os boatos. Alguém tinha dado cabo do bicho. Correram atrás do promotor. O homem da lei se compadeceu. Como podiam ter dado cabo de criatura tão indefesa? Começou a investigação. Sempre que o caso exigia, fazia as vezes de polícia. Ia até as últimas consequências. No assunte ficou sabendo que Zé Meia Frase não gostava de costelinha. Foi ter com o aposentado para inquirição. O suspeito achou uma afronta aquele interrogatório sobre um assunto tão à toa e com meias palavras mandou o promotor ir caçar serviço. Afrontado, a autoridade decidiu que iria até as últimas consequências, mesmo não tendo certeza da culpa do cidadão. Processou, intimidou, mostrou, ridicularizou o réu por toda cidade. Fez um verdadeiro circo. Ao final perdeu. Descobriram que costelinha tinha comido osso de frango. Iguaria provavelmente caçada em algum lixo. E osso de frango mata cachorro. Perfura os intestinos. Público e notório. “Nem sempre se ganha todas” teria dito o promotor ao saber da absolvição. Mas Meia Frase também tinha perdido. Muito. O sossego, a dignidade, o respeito. Seus filhos eram apontados na rua. Sua esposa ameaçada pelos partidários de costelinha. Não teve solução. Arrumaram as trouxas e foram caçar rumo em outras paragens. Saíram da cidade no mesmo dia em que o promotor também o fazia. Tinha sido remanejado para capital. Seu grande sonho. Tudo estava seguindo seu destino até que os dois cruzaram-se no caminho.

          No posto de gasolina na saída da cidade, Zé avistou Hermógenes. Não aguentou e foi tirar satisfação. Com sua maneira sucinta peculiar, chamou o promotor na regulagem. Questionou o motivo da autoridade ter encasquetado com ele e acabado com sua vida. O promotor, que nem se lembrava direito do caso, deu de ombros e, com um sorriso sarcástico no rosto soltou a fala: “não pego ninguém sem precisão”. Foi o tempo de pronunciar a última letra para cair no chão devido a um buraco de bala no meio da testa. Não deu tempo nem de desfazer o sorriso. Recolocando a arma no coldre, Zé Meia Frase, desfazendo de uma fama antiga, pronunciou letra por letra: “Não é nada pessoal. É somente o meu ofício”.           

 

* essa é uma estória de ficção

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 25 de novembro de 2016

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Toupeira e outros animais


Toupeira e outros animais

 

          Donaldo Toupeira era rico. Muito rico. Dono da cidade. Tinha negócios de gado, lavoura e armazém. Para uma cidade do interior era muita coisa. Tinha tradições rígidas e conservadoras. Por isso foi presenteado com a alcunha de toupeira. Quando se tratava de tradição, família e propriedade, não via nada a sua frente. Era intransigente. Mulher com ele era na cozinha. E se não tivesse nos afazeres domésticos era da vida. Podia passar a mão e desrespeitar. Quando moço se gabava de ter deflorado a maioria das moças da cidade e arredores. Depois ia para mesa de boteco contar as aventuras. Gargalhava e zombava. Quando alguma delas lhe chegava prenha, mandava para a capital tirar a criança. Tudo na surdina. Tinha que manter a pose de guardião da família. Todos sabiam e ninguém sabia. Ai se alguém comentasse... comia o pipoco. Donaldo andava armado. Coldre sempre junto a costela. Só se separava da arma para comer ou se acossar com Dona Eslovênia, sua esposa. Mulher apagada. Restrita. Tinha dado à luz a uma filha somente. Catarina. Logo que a menina tomou corpo foi mandada para a capital para estudar e se fazer. Voltou para a cidade perto do fim da campanha para prefeito daquele ano. O pai resolvera se candidatar. Contra a vontade de muitos, mas a favor da vontade dele. Acreditava na sua capacidade. E ele tinha capacidade. Se havia ganho tanto dinheiro com negócios, podia muito bem administrar uma cidade. E ele gostava de sua cidade. Devia a ela sua fortuna e sua respeitabilidade. Fez uma campanha dura. Calcada nos conceitos que ele acreditava que a população queria ouvir. Fez compromisso contra o aborto a pedido do padre da cidade. Ganhou votos. Fez compromisso de liberação das armas a pedido do sindicato rural. Ganhou votos. Foi ganhando votos até que ganhou. Surpresa já que concorria com político tradicional da região. O povo havia se cansado. Ele era a solução. E ele daria uma solução. Na festa de comemoração muitos abusos foram cometidos. As ideias defendidas por Toupeira reverberavam pelos becos da cidade. Entusiasmo, álcool e excesso. Numa dessas, sua filha, que pouco conhecida era na cidade, foi abordada por um grupo de rapazes em comemoração. Queriam se divertir. Ela não queria se divertir. Eles se divertiram com ela. Ela, envergonhada, escondeu. Escondeu até onde pode. Não pode esconder a barriga. Teve que contar ao pai. Acessado de raiva Donaldo passou uma mão na arma e a outra em Catarina e saiu desembestado pela rua. Caçando quem havia feito mal a sua filha. Foi encontrar o grupo ofensor na Prefeitura. Todos eles trabalharam na sua campanha. Cabos eleitorais. Estavam a papear na porta da repartição pública discorrendo sobre as aventuras sexuais que haviam tido. Tal qual Toupeira fazia em sua juventude. Um filme foi passando pela cabeça de Donaldo enquanto os passos iam diluindo. Veio-lhe à mente a campanha e o acirramento das ideias. Reconheceu internamente que exagerara por diversas vezes, mas tudo em prol do objetivo almejado. Um bem comum. Pensou em sua disposição de amenizar após a vitória. Pregou a união. Lembrou. Chegou. A turma percebeu sua aproximação e os sorrisos foram se abrindo. Estavam diante de seu ídolo. A pessoa a ser copiada. Ele parou. Olhou. Entendeu. Julgou. Condenou. Sacou de sua arma, apontou para a própria têmpora e apertou o gatilho. Agonizou na praça em frente à prefeitura sobre uma poça de sangue vermelho. Cor de sua campanha. O sangue que molharia e sustentaria as ideias plantadas por ele ali naquela cidade de interior.    

 

* essa é uma estória de ficção

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 11 de novembro de 2016

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

quem tem medo do halloween?


Quem tem medo do Halloween?

 

 

          Não deixa de me impressionar nunca, a capacidade que as pessoas têm de criar polêmica. Em tempos de redes sociais então... parece gasolina em fogueira. Todo ano quando culminamos o mês de outubro começam as postagens sobre o halloween. A favor e contra. Invocam o saci, o papai noel, a mula sem cabeça, o curupira, os vampiros, as múmias e dezenas de outros mais para defender uma tese. Todos têm uma tese. De festa já incorporada a cultura brasileira até estrangeirismo imposto pelo colonialismo americano. Eu de cá da minha análise, só fico observando e rindo. Gargalho de ver o embate de opiniões efusivas em cima de um tema totalmente, a meu ver, insuficiente de conteúdo e propósito. Ou seja, acho uma perda de tempo incrível. Estamos importando tradições de outros países? A resposta é sim, mas o papai noel está aí para comprovar que certos cenários são universais e dificilmente os povos conseguem blindagem contra eles. E convenhamos, ninguém mais se lembra que o bom velhinho foi criado para fazer propaganda da Coca Cola (que é um patrimônio mundial). Essa importação mata a nossa cultura? Acho difícil. Apesar de sermos uma nação nova que incorporou pedaços de culturas de outros povos, já temos uma história bem solidificada. Por isso não se reocupem que o saci que com certeza sobreviverá.

          Ao final conto como funcionou comigo. Há uns três anos me fantasiei de coveiro (que na verdade representava meu ofício à época) e brinquei com meus filhos e vizinhos de condomínio. Sem maiores pretensões. Foi lúdico e divertido. Eles gostaram. Pediram que no outro ano fizesse novamente. Assim eu atendi com uma fantasia diferente. E assim se criou uma pequena tradição. Sem culto às imagens ou assassinatos de culturas. Tudo divertido, que no meu ponto de vista, é o objetivo a ser alcançado. Esse ano ficaram na apreensão para saber de qual personagem eu me vestiria. Juntou-se a meninada, e alguns adultos curiosos, na porta de casa. Ao som de thriller de Michael Jackson um lobisomem correu a assusta-los, apesar de já saberem de antemão que não passariam ilesos de um pequeno susto. E enquanto alguns se preocupavam em analisar a influência nefasta, ou não, do halloween, nós nos preocupávamos em nos divertir e comer doces. É claro.                  

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 04 de novembro de 2016