Chumbo
trocado
Zé
Meia Frase era matador. Aposentado. Já tinha juntado o suficiente do ofício
para viver uma vida tranquila. Merecia descanso. A alcunha tinha lhe pregado
por sua economia com o vocabulário. Duas ou três palavras antes de executar o
encomendado da vez. Nunca terminava a frase. O cidadão não sabia nem do que
tinha morrido. Nunca também fez serviço em ninguém que não merecesse. Estudava
o passado do cidadão antes de aceitar o serviço. Era questão de honra. Dizia
sempre: “não pego ninguém sem precisão”. Curto e grosso. Largado da agitação da
pólvora vivia seus dias a picar fumo e cuidar da família. Tranquilo. Até que um
dia cruzou em seu caminho um doutor da lei.
Hermógenes
de Andrada era promotor. Novo no ofício. Filho de família tradicional da
capital. Herdara do pai juiz o nome e a fama de implacável. Em sua primeira
lotação no interior agarrava-se a lei como uma tábua de salvação. Bom senso era
uma palavra que não existia em seu dicionário. Abarrotava a mesa do juiz da
comarca com ações e mais ações. Metia o bedelho em tudo. Era amado por parte da
população que recorria a ele em caso de precisão e odiado pela outra parte que
sofria com os cravos de sua espora. Culpados ou inocentes. Para ele isso era
desvio padrão. Dizia sempre: “Não é nada pessoal. É somente o meu ofício”. Sempre
com um sorriso no rosto. Surfava na onda da sua ascensão. Altivo. Até que um
dia cruzou em seu caminho um matador aposentado.
Costelinha
era um pulguento que vivia na praça da matriz. Ficava ali sempre tentando angariar
uma sobra de comida. Cara de cachorro pidão. Fazia parte da população da
cidade. Faltava só a placa de patrimônio público. Um dia costelinha anoiteceu e
não amanheceu. Esticou as canelas. Logo que descoberto começaram os boatos.
Alguém tinha dado cabo do bicho. Correram atrás do promotor. O homem da lei se
compadeceu. Como podiam ter dado cabo de criatura tão indefesa? Começou a
investigação. Sempre que o caso exigia, fazia as vezes de polícia. Ia até as
últimas consequências. No assunte ficou sabendo que Zé Meia Frase não gostava
de costelinha. Foi ter com o aposentado para inquirição. O suspeito achou uma
afronta aquele interrogatório sobre um assunto tão à toa e com meias palavras
mandou o promotor ir caçar serviço. Afrontado, a autoridade decidiu que iria
até as últimas consequências, mesmo não tendo certeza da culpa do cidadão.
Processou, intimidou, mostrou, ridicularizou o réu por toda cidade. Fez um
verdadeiro circo. Ao final perdeu. Descobriram que costelinha tinha comido osso
de frango. Iguaria provavelmente caçada em algum lixo. E osso de frango mata
cachorro. Perfura os intestinos. Público e notório. “Nem sempre se ganha todas”
teria dito o promotor ao saber da absolvição. Mas Meia Frase também tinha
perdido. Muito. O sossego, a dignidade, o respeito. Seus filhos eram apontados
na rua. Sua esposa ameaçada pelos partidários de costelinha. Não teve solução.
Arrumaram as trouxas e foram caçar rumo em outras paragens. Saíram da cidade no
mesmo dia em que o promotor também o fazia. Tinha sido remanejado para capital.
Seu grande sonho. Tudo estava seguindo seu destino até que os dois cruzaram-se
no caminho.
No
posto de gasolina na saída da cidade, Zé avistou Hermógenes. Não aguentou e foi
tirar satisfação. Com sua maneira sucinta peculiar, chamou o promotor na
regulagem. Questionou o motivo da autoridade ter encasquetado com ele e acabado
com sua vida. O promotor, que nem se lembrava direito do caso, deu de ombros e,
com um sorriso sarcástico no rosto soltou a fala: “não pego ninguém sem
precisão”. Foi o tempo de pronunciar a última letra para cair no chão devido a
um buraco de bala no meio da testa. Não deu tempo nem de desfazer o sorriso.
Recolocando a arma no coldre, Zé Meia Frase, desfazendo de uma fama antiga, pronunciou
letra por letra: “Não é nada pessoal. É somente o meu ofício”.
*
essa é uma estória de ficção
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 25 de novembro de
2016
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