Toupeira
e outros animais
Donaldo
Toupeira era rico. Muito rico. Dono da cidade. Tinha negócios de gado, lavoura
e armazém. Para uma cidade do interior era muita coisa. Tinha tradições rígidas
e conservadoras. Por isso foi presenteado com a alcunha de toupeira. Quando se
tratava de tradição, família e propriedade, não via nada a sua frente. Era
intransigente. Mulher com ele era na cozinha. E se não tivesse nos afazeres
domésticos era da vida. Podia passar a mão e desrespeitar. Quando moço se
gabava de ter deflorado a maioria das moças da cidade e arredores. Depois ia
para mesa de boteco contar as aventuras. Gargalhava e zombava. Quando alguma
delas lhe chegava prenha, mandava para a capital tirar a criança. Tudo na
surdina. Tinha que manter a pose de guardião da família. Todos sabiam e ninguém
sabia. Ai se alguém comentasse... comia o pipoco. Donaldo andava armado. Coldre
sempre junto a costela. Só se separava da arma para comer ou se acossar com
Dona Eslovênia, sua esposa. Mulher apagada. Restrita. Tinha dado à luz a uma
filha somente. Catarina. Logo que a menina tomou corpo foi mandada para a capital
para estudar e se fazer. Voltou para a cidade perto do fim da campanha para
prefeito daquele ano. O pai resolvera se candidatar. Contra a vontade de muitos,
mas a favor da vontade dele. Acreditava na sua capacidade. E ele tinha
capacidade. Se havia ganho tanto dinheiro com negócios, podia muito bem
administrar uma cidade. E ele gostava de sua cidade. Devia a ela sua fortuna e
sua respeitabilidade. Fez uma campanha dura. Calcada nos conceitos que ele
acreditava que a população queria ouvir. Fez compromisso contra o aborto a
pedido do padre da cidade. Ganhou votos. Fez compromisso de liberação das armas
a pedido do sindicato rural. Ganhou votos. Foi ganhando votos até que ganhou.
Surpresa já que concorria com político tradicional da região. O povo havia se
cansado. Ele era a solução. E ele daria uma solução. Na festa de comemoração
muitos abusos foram cometidos. As ideias defendidas por Toupeira reverberavam
pelos becos da cidade. Entusiasmo, álcool e excesso. Numa dessas, sua filha,
que pouco conhecida era na cidade, foi abordada por um grupo de rapazes em
comemoração. Queriam se divertir. Ela não queria se divertir. Eles se
divertiram com ela. Ela, envergonhada, escondeu. Escondeu até onde pode. Não
pode esconder a barriga. Teve que contar ao pai. Acessado de raiva Donaldo
passou uma mão na arma e a outra em Catarina e saiu desembestado pela rua.
Caçando quem havia feito mal a sua filha. Foi encontrar o grupo ofensor na
Prefeitura. Todos eles trabalharam na sua campanha. Cabos eleitorais. Estavam a
papear na porta da repartição pública discorrendo sobre as aventuras sexuais
que haviam tido. Tal qual Toupeira fazia em sua juventude. Um filme foi
passando pela cabeça de Donaldo enquanto os passos iam diluindo. Veio-lhe à
mente a campanha e o acirramento das ideias. Reconheceu internamente que
exagerara por diversas vezes, mas tudo em prol do objetivo almejado. Um bem
comum. Pensou em sua disposição de amenizar após a vitória. Pregou a união.
Lembrou. Chegou. A turma percebeu sua aproximação e os sorrisos foram se abrindo.
Estavam diante de seu ídolo. A pessoa a ser copiada. Ele parou. Olhou.
Entendeu. Julgou. Condenou. Sacou de sua arma, apontou para a própria têmpora e
apertou o gatilho. Agonizou na praça em frente à prefeitura sobre uma poça de
sangue vermelho. Cor de sua campanha. O sangue que molharia e sustentaria as
ideias plantadas por ele ali naquela cidade de interior.
*
essa é uma estória de ficção
Guilherme
Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 11 de novembro de
2016
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