sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Toupeira e outros animais


Toupeira e outros animais

 

          Donaldo Toupeira era rico. Muito rico. Dono da cidade. Tinha negócios de gado, lavoura e armazém. Para uma cidade do interior era muita coisa. Tinha tradições rígidas e conservadoras. Por isso foi presenteado com a alcunha de toupeira. Quando se tratava de tradição, família e propriedade, não via nada a sua frente. Era intransigente. Mulher com ele era na cozinha. E se não tivesse nos afazeres domésticos era da vida. Podia passar a mão e desrespeitar. Quando moço se gabava de ter deflorado a maioria das moças da cidade e arredores. Depois ia para mesa de boteco contar as aventuras. Gargalhava e zombava. Quando alguma delas lhe chegava prenha, mandava para a capital tirar a criança. Tudo na surdina. Tinha que manter a pose de guardião da família. Todos sabiam e ninguém sabia. Ai se alguém comentasse... comia o pipoco. Donaldo andava armado. Coldre sempre junto a costela. Só se separava da arma para comer ou se acossar com Dona Eslovênia, sua esposa. Mulher apagada. Restrita. Tinha dado à luz a uma filha somente. Catarina. Logo que a menina tomou corpo foi mandada para a capital para estudar e se fazer. Voltou para a cidade perto do fim da campanha para prefeito daquele ano. O pai resolvera se candidatar. Contra a vontade de muitos, mas a favor da vontade dele. Acreditava na sua capacidade. E ele tinha capacidade. Se havia ganho tanto dinheiro com negócios, podia muito bem administrar uma cidade. E ele gostava de sua cidade. Devia a ela sua fortuna e sua respeitabilidade. Fez uma campanha dura. Calcada nos conceitos que ele acreditava que a população queria ouvir. Fez compromisso contra o aborto a pedido do padre da cidade. Ganhou votos. Fez compromisso de liberação das armas a pedido do sindicato rural. Ganhou votos. Foi ganhando votos até que ganhou. Surpresa já que concorria com político tradicional da região. O povo havia se cansado. Ele era a solução. E ele daria uma solução. Na festa de comemoração muitos abusos foram cometidos. As ideias defendidas por Toupeira reverberavam pelos becos da cidade. Entusiasmo, álcool e excesso. Numa dessas, sua filha, que pouco conhecida era na cidade, foi abordada por um grupo de rapazes em comemoração. Queriam se divertir. Ela não queria se divertir. Eles se divertiram com ela. Ela, envergonhada, escondeu. Escondeu até onde pode. Não pode esconder a barriga. Teve que contar ao pai. Acessado de raiva Donaldo passou uma mão na arma e a outra em Catarina e saiu desembestado pela rua. Caçando quem havia feito mal a sua filha. Foi encontrar o grupo ofensor na Prefeitura. Todos eles trabalharam na sua campanha. Cabos eleitorais. Estavam a papear na porta da repartição pública discorrendo sobre as aventuras sexuais que haviam tido. Tal qual Toupeira fazia em sua juventude. Um filme foi passando pela cabeça de Donaldo enquanto os passos iam diluindo. Veio-lhe à mente a campanha e o acirramento das ideias. Reconheceu internamente que exagerara por diversas vezes, mas tudo em prol do objetivo almejado. Um bem comum. Pensou em sua disposição de amenizar após a vitória. Pregou a união. Lembrou. Chegou. A turma percebeu sua aproximação e os sorrisos foram se abrindo. Estavam diante de seu ídolo. A pessoa a ser copiada. Ele parou. Olhou. Entendeu. Julgou. Condenou. Sacou de sua arma, apontou para a própria têmpora e apertou o gatilho. Agonizou na praça em frente à prefeitura sobre uma poça de sangue vermelho. Cor de sua campanha. O sangue que molharia e sustentaria as ideias plantadas por ele ali naquela cidade de interior.    

 

* essa é uma estória de ficção

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 11 de novembro de 2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário