Ao Mestre com carinho
Existem
alguns assuntos no mundo que tem classificação “caixa de marimbondo”. Não
entenderam? Explico. Melhor não mexer. E se o fizer prepare-se para as
ferroadas. Por mais leve que seja o resvalo, ou por mais correto que esteja, a
chance de sair ferido é grande. Crônica passada cometi essa temeridade. Em meio
a uma tese sobre o ato intrínseco do ser humano de torcer por algo ou alguém,
toquei no nome da Estação Primeira de Mangueira. Que primário erro cometi. Logo
se alvoraçou sobre o pobre cronista um enxame de marimbondos ferozes. Recuperado
das doloridas ferroadas e consciente do meu engano, escrevo essa assertiva de
hoje para iniciar processo de redenção com os amantes da verde e rosa. Faço
isso rendendo minha homenagem ao Mestre Cartola por quem tenho uma admiração
musical poética profunda e que representa como ninguém a caixa de marimbon...
quer dizer a Mangueira. Vamos a estória.
Estava eu esses dias
escutando, juntamente com a esposa, por ordem do carnaval, um samba belíssimo
chamado “Fiz por você o que pude” interpretado por Paulinho da Viola. Em determinado
momento da música surge uma segunda voz fora a de Paulinho e canta a estrofe:
“Sonhava desde menino
Tinha o desejo felino
De contar toda a tua
história
Este sonho realizei
Um dia a lira empunhei
E cantei todas tuas
glórias
Perdoa-me a comparação
Mas fiz uma transfusão
Eis que Jesus me
'premeia'
Surge outro compositor
Jovem de grande valor
Com o mesmo sangue na
veia”
Não precisa ser um bom ouvinte
para notar que a voz que entoa esse trecho é de uma pessoa dos tempos antigos
de samba, devido a qualidade chiada do som. Sempre associei essa voz a Paulo da
Portela e entendia que a música mostrava uma preocupação com a sucessão da Escola
de Samba Portela, que agora se mostrava aliviado pela aparição de Paulinho da
Viola, o legítimo sucessor de Paulo. Mas o trecho inicial da música me levava a
questionar tal conclusão. Era ele:
“Todo o tempo que eu
viver
Só me fascina você,
Mangueira
Guerreei na juventude
Fiz por você o que pude,
Mangueira”
Por que cargas d´água um portelense primaz rendia louros à principal
adversária? Teria Paulinho da Viola iniciado sua obra pela Mangueira e por
motivos outros se transferido para a adversária? Seria essa música uma
alfinetada nos mangueirenses? Essa era a peça que não se encaixava no meu
quebra cabeças sobre a origem da música. Foi quando pedi a esposa, aproveitando
o momento carnavalesco, que pesquisasse sobre o assunto. Eis que descubro que a
autoria da música não era de Paulo da Portela e nem de Paulinho. Era na verdade
de Cartola, o que explicava a saudação à Mangueira. E que a voz que entoava a
parte sobre o sucessor também era dele. Em verdade Cartola que estava
preocupado com a sucessão da Mangueira e havia feito a canção para homenagear a
aparição de Nelson Sargento que entendia ser seu sucessor natural. Ou seja, o
que entendia ser uma passagem de bastão de Paulo da Portela para Paulinho da
Viola, era na verdade de Cartola para Nelson Sargento. O fato que fica fora do
contexto seria a interpretação da música por Paulinho da Viola, o que não se
mostra tão estranho por ser comum os sambistas, principalmente os mais cavalheiros,
renderem homenagens a outros sambistas e escolas adversárias por conta de obras
atemporais. Fechada a contenda, só não fiquei triste por ser exposto meu
raciocínio troncho, por conta de saber da real história, coisa que me fascina
muito, e por outro fato novo descoberto. Na mesma narração histórica, dispõe
que alguns críticos e súditos infiéis, à época, se arvoraram sobre a composição
em razão de um erro gramatical cometido pelo compositor. A palavra “premeia”
mostrava um deslize de Cartola em detrimento da forma correta “premia”. Isso
causou um desgosto tremendo em Cartola que evitou inclusive de cantar a música
por longo tempo mostrando sua vergonha de não ter estudo firme, tendo cursado
somente até a quarta série do primário. Mas entre amigos confessou o motivo do
erro. Disse que ao escrever a letra ficou em dúvida entre as duas formas do
verbo premiar, pois que então se decidiu ao ler os sermões de Padre Antônio
Vieira: “assim castiga, ou premeia Deus”. E assim seguiu a letra e a obra de arte.
E nesse momento penso que as pessoas que o criticaram escreveram seus nomes na
História com lápis cujo traço resta já apagado, enquanto Mestre Angenor de
Oliveira, o Cartola, ao contrário, tal qual Padre Antônio Vieira, escreveu seu
nome da História com tinta “preto permanente” provavelmente vindo de uma Parker
51.
Com essa narrativa pretendo, portanto, além de mostrar minha admiração
pela obra de Cartola, fazer as pazes com os mangueirenses que muito se
indispuseram com o cronista por deslize (não intencional) tal qual o uso
poético de “premeia”. E vamos voltar a viver em paz sem resvalar mais em caixas
de marimbondo, com exceção do Flamengo claro, que no meu ponto de vista... olha...
deixa quieto.
Guilherme Augusto Santana
Goiânia, sexta feira 19 de fevereiro de 2016
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