sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

ao Mestre com carinho


Ao Mestre com carinho

         

          Existem alguns assuntos no mundo que tem classificação “caixa de marimbondo”. Não entenderam? Explico. Melhor não mexer. E se o fizer prepare-se para as ferroadas. Por mais leve que seja o resvalo, ou por mais correto que esteja, a chance de sair ferido é grande. Crônica passada cometi essa temeridade. Em meio a uma tese sobre o ato intrínseco do ser humano de torcer por algo ou alguém, toquei no nome da Estação Primeira de Mangueira. Que primário erro cometi. Logo se alvoraçou sobre o pobre cronista um enxame de marimbondos ferozes. Recuperado das doloridas ferroadas e consciente do meu engano, escrevo essa assertiva de hoje para iniciar processo de redenção com os amantes da verde e rosa. Faço isso rendendo minha homenagem ao Mestre Cartola por quem tenho uma admiração musical poética profunda e que representa como ninguém a caixa de marimbon... quer dizer a Mangueira. Vamos a estória.

         

Estava eu esses dias escutando, juntamente com a esposa, por ordem do carnaval, um samba belíssimo chamado “Fiz por você o que pude” interpretado por Paulinho da Viola. Em determinado momento da música surge uma segunda voz fora a de Paulinho e canta a estrofe:

 

Sonhava desde menino

Tinha o desejo felino

De contar toda a tua história

Este sonho realizei

Um dia a lira empunhei

E cantei todas tuas glórias

Perdoa-me a comparação

Mas fiz uma transfusão

Eis que Jesus me 'premeia'

Surge outro compositor

Jovem de grande valor

Com o mesmo sangue na veia

 

Não precisa ser um bom ouvinte para notar que a voz que entoa esse trecho é de uma pessoa dos tempos antigos de samba, devido a qualidade chiada do som. Sempre associei essa voz a Paulo da Portela e entendia que a música mostrava uma preocupação com a sucessão da Escola de Samba Portela, que agora se mostrava aliviado pela aparição de Paulinho da Viola, o legítimo sucessor de Paulo. Mas o trecho inicial da música me levava a questionar tal conclusão. Era ele:

 

“Todo o tempo que eu viver

Só me fascina você, Mangueira

Guerreei na juventude

Fiz por você o que pude, Mangueira”

 

Por que cargas d´água um portelense primaz rendia louros à principal adversária? Teria Paulinho da Viola iniciado sua obra pela Mangueira e por motivos outros se transferido para a adversária? Seria essa música uma alfinetada nos mangueirenses? Essa era a peça que não se encaixava no meu quebra cabeças sobre a origem da música. Foi quando pedi a esposa, aproveitando o momento carnavalesco, que pesquisasse sobre o assunto. Eis que descubro que a autoria da música não era de Paulo da Portela e nem de Paulinho. Era na verdade de Cartola, o que explicava a saudação à Mangueira. E que a voz que entoava a parte sobre o sucessor também era dele. Em verdade Cartola que estava preocupado com a sucessão da Mangueira e havia feito a canção para homenagear a aparição de Nelson Sargento que entendia ser seu sucessor natural. Ou seja, o que entendia ser uma passagem de bastão de Paulo da Portela para Paulinho da Viola, era na verdade de Cartola para Nelson Sargento. O fato que fica fora do contexto seria a interpretação da música por Paulinho da Viola, o que não se mostra tão estranho por ser comum os sambistas, principalmente os mais cavalheiros, renderem homenagens a outros sambistas e escolas adversárias por conta de obras atemporais. Fechada a contenda, só não fiquei triste por ser exposto meu raciocínio troncho, por conta de saber da real história, coisa que me fascina muito, e por outro fato novo descoberto. Na mesma narração histórica, dispõe que alguns críticos e súditos infiéis, à época, se arvoraram sobre a composição em razão de um erro gramatical cometido pelo compositor. A palavra “premeia” mostrava um deslize de Cartola em detrimento da forma correta “premia”. Isso causou um desgosto tremendo em Cartola que evitou inclusive de cantar a música por longo tempo mostrando sua vergonha de não ter estudo firme, tendo cursado somente até a quarta série do primário. Mas entre amigos confessou o motivo do erro. Disse que ao escrever a letra ficou em dúvida entre as duas formas do verbo premiar, pois que então se decidiu ao ler os sermões de Padre Antônio Vieira: “assim castiga, ou premeia Deus”. E assim seguiu a letra e a obra de arte. E nesse momento penso que as pessoas que o criticaram escreveram seus nomes na História com lápis cujo traço resta já apagado, enquanto Mestre Angenor de Oliveira, o Cartola, ao contrário, tal qual Padre Antônio Vieira, escreveu seu nome da História com tinta “preto permanente” provavelmente vindo de uma Parker 51.  

      

Com essa narrativa pretendo, portanto, além de mostrar minha admiração pela obra de Cartola, fazer as pazes com os mangueirenses que muito se indispuseram com o cronista por deslize (não intencional) tal qual o uso poético de “premeia”. E vamos voltar a viver em paz sem resvalar mais em caixas de marimbondo, com exceção do Flamengo claro, que no meu ponto de vista... olha... deixa quieto.

             

 

 

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 19 de fevereiro de 2016

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